Capítulo 10

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Depois do que fiz pela viúva do Mudoca, os garotos mais novos, Carlo e José Marcos, ficaram bem mais próximos de mim. Ainda não tinham coragem de falar sobre o assassinato do tio, mas eu tinha esperanças de conseguir tirar informações deles com o tempo.

—  O espírito do meu avô mora num baú de madeira que tem lá em casa. — José Marcos tagarelava pela trilha da lavoura, com sua voz de moleque começando a engrossar — Tem vez que dá pra ouvir mexendo lá dentro, dotor. E se encostar o ouvido na fechadura, parece que tem um trem cochichando lá dentro.

Nós estávamos andando devagar sobre a pastagem úmida. Era preciso terminar de consertar as cercas. Eu ia em silêncio, não apenas porque preferia assim, mas porque ainda estava com dor e febre. Segundo o velho índio, sabido dos climas daquela região, a neblina que caía naquela semana logo se tornaria geada. Isso não me animava nem um pouco.

— Minha mãe fala que meu vô pediu em sonho pra ela me colocar o nome dele. — Prosseguia o menino ao meu lado, correndo para me alcançar — Ela num quis, porque o vô era matador, homem muito ruim. Tinha matado homem, muié e menino a vida toda. Mas ele vivia bem, dotor, tinha muito ouro. Cavucava essas terra e achava muita pedra preciosa!

— Tá certo de se irritar então por acabar morando em um baú, não é?

— Pois é! — Riu o garoto, levando meu sarcasmo como encorajamento. Eu sentia saudade dos primeiros dias, quando ele ainda era acanhado comigo — Posso confessar um segredo pro senhor, dotor?

— Vocês todos acham que tenho cara de padre.

Ele riu outra vez.

— Teve um dia, dotor, era de manhã cedinho, eu tava sozinho em casa tomando café na cozinha e escutei alguém chamar meu nome. A mãe fala que a gente num deve de responder se num tiver vendo quem chamando.

— Por quê?

— Pode ser o bicho ruim, sei lá. E na hora eu fui besta e respondi "Senhor?" porque achei que era o pai me chamando. Só que aí ficou tudo quieto demais e ninguém respondeu. Eu fui pro corredor ver se tinha alguém em casa e vi uma sombra passar por debaixo da porta do quarto. Ainda achei que era o pai, então cheguei mais perto. Mas então, dotor, senhor nem imagina! Eu ouvi direitinho o pai me gritando do lado de fora, lá do terreiro!

— E de quem era a sombra dentro da casa? — Perguntei, sem ânimo algum.

— Penso que era do vô, uai! — Contou José Marcos, de um jeito ainda mais sombrio — Quando eu escutei a voz do pai, eu saí correndo, mas alguma coisa veio atrás de mim soprando na minha nuca. Só parou quando eu saí pro terreiro!

A cada passo eu me cansava e me irritava mais. Nunca fui de crendices daquele tipo.

— O pai tinha esquecido a marmita, dotor. Sorte minha, né? Contei pra ele o que tinha acontecido, mas ele num acreditou. Pedi pra ele jogar o baú fora, que tava empesteado com espírito ruim, mas o pai ficou doido da vida! Falou que de jeito nenhum joga fora e que se eu chegar perto, vou apanhar. Só sei que quando meu vô foi assassinado, picaram ele em várias parte e foi naquele baú que colocaram tudo.

Parei e olhei para ele, sentindo meu rosto tenso. O final da história pelo menos era bom. Contudo, não consegui comentar nada, pois me dobrei ao meio em um ataque de tosse na mesma hora. Aquela parecia a pior gripe que eu já tinha tido na vida.

— Ih, dotor, porque o senhor num se benze? — O menino parou com as mãos na cintura e uma sobrancelha arqueada — A dona Santinha é benzedeira e é boa pra curar essas tosse de cachorro que o senhor tá.

a Flor e o VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora