Capítulo 31

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No dia 25 de setembro de 1982, Rosa e eu nos casamos. As únicas pessoas que compareceram ao cartório foram a mãe dela, dois de seus irmãos e Mauro. Foi algo muito rápido e sem qualquer sentimentalismo. Assim que os papéis foram assinados, fomos embora como se nada tivesse acontecido.

Contudo, alguma inquietação me assolava, e eu não sabia dizer o que era. Começou desde a manhã, quando acordei e entendi que estaria casado a partir daquele dia. As brincadeiras de Mauro não me ajudaram em nada.

— Se não quiser consumar, não precisa. — Ele dizia — Ninguém vai te culpar por se negar a uma caipirinha feia daquelas.

O mesmo Mauro que desdenhou de Rosa até o último momento, foi o que também não tirou os olhos dela durante a cerimônia no cartório. Aquilo me irritou, mas eu mesmo não sabia a razão de ficar incomodado com o evidente desejo que ele começava a ter por ela. Estava com Rosa por necessidade, não por paixão e menos ainda por desejo. Pensei, na época, que estava bravo apenas por ser algo desrespeitoso da parte dele, visto que as pessoas presentes notariam que ele olhava para a noiva do irmão.

— Não tava reparando antes. — Ele me sussurrou ao fim da cerimônia — Mas a caipira tá diferente. Que aconteceu com ela? De onde tirou esse traseiro e esses peitos? Era só osso e pele.

— Tá nascendo, Mauro. Ela tava morta e agora tá nascendo.

Ocorre que Rosa não era mais a menina que havíamos conhecido há alguns meses. Ela estava se transformando, recuperando a forma que algum dia havia tido, e que provavelmente era o motivo do filho do fazendeiro ter se envolvido com ela. Não era nada feia, realmente. O manicômio a tinha destruído, mas agora voltava a viver.

No dia do casamento, ela estava vestida com um longo vestido cor de rosa claro, nada muito fino, mas que se ajeitava às novas curvas de seu corpo, ainda que de maneira discreta. Seus cabelos de índia estavam soltos, com as pontas levemente curvadas. Olhos grandes e negros, muito brilhantes, miravam os meus com sonhos e medos extremos. A pele estava viçosa, os seios tomavam formas sob o tecido e os lábios grossos eram tentadores agora que não estavam mais rachados pelo frio e nem tinham aquela cor arroxeada da doença. Estavam rosados e contrastavam de forma esplêndida com o branco de seu sorriso.

"Minha mulher?" Pensava, inquieto, observando-a andar pela casa naqueles dias "Será mesmo minha?"

Conforme o tempo se passava, ela começava a parecer outra vez um ser humano e não com o ser destruído que conheci. As olheiras, as marcas em seu corpo, a tristeza em suas feições, a magreza extrema, tudo isso a deixava, dia após dia. A luz que havia ao redor dela estava maior e me fazia querer passar todos os dias olhando para ela. Queria estar sempre perto, ouvir sua voz e sentir que a tinha comigo.

O maior motivo para que se recuperasse tão rápido era Eva. Desde que lhe trouxe a menina, ela se tornou uma pessoa nova.

— O dotor me deu a vida de volta. — Lembro-me de vê-la levantar a menina nos braços na direção do sol da manhã e sorrir enquanto dizia isso. Raios dourados lambiam seu sorriso e seus olhos de jovem puri a contemplar a cria — Eu te devo a minha vida, a minha vida toda, dotor.

Rosa. O nome me tortura como um espinho eternamente sob meus calcanhares. Cheiro de alecrim e voz de pássaro alegre. O que Deus queria de mim?

Tornou-se minha esposa no papel, cumprindo alguma profecia desconhecida que aquele Ser superior tinha para nós. Parecia feliz por isso, mas eu não. Me casar havia sido um grande pesadelo. Sentia haver condenado a mim e a ela. Temia arrastar sua alma para a mesma lama que Mauro havia levado a esposa.

"Eu não posso condenar um anjo. Não posso."

Ao fim do dia, quando estávamos indo para nossa casinha no alto do morro, senti que ela me olhava, mas não quis olhar de volta. Segui emburrado, pisando na grama suja de bosta de boi, tentando afastar os pernilongos que nos castigavam naquela noite.

a Flor e o VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora