A linha no horizonte mostra a infinitude e dá a sensação de liberdade. Sinto na pele, cansada e manchada do sol, a brisa fresca do vento. Meus olhos veem todos os negros circulando no fundo da fazenda, próximos as palmeiras balançando em uma única direção, seguindo em mais uma lida no cafezal. Meu corpo acostumado ao cansaço do trabalho diário não reclama das horas sem dormi, os pés nus todo o tempo em pé deste a noite anterior está inchado e faz não sentir meus passos pela madeira do chão ou a maciez dos tapetes. Aproveito os pequenos segundos para respirar sossegada, longe de todo o sangue e gritaria, sinhá Isabel ainda está em trabalho de parto, o mininu pelo visto não deseja separar do ventre da mãe, não deixando a mulher descansar e nem as negras da fazenda.
- Tetê. - Zulmira chama, viro o rosto na sua direção, minha barriga aperta pela fome.
- Esta sendo difíce! - falo para ela, a mulher de rosto redondo olha para mim, as faces de Zulmira assim como as minhas, não expressam muita coisa, apenas uma dureza enraizada e infelicidade no fundo do olho preto, - E os outros bebê também num foi face, tudo morto! Ou ele ou será ela a vive. - Zulmira balança a cabeça e volta ao fogão da lenha, começando a preparar o café, ninguém na casa grande tinha tomado o café da noite.
- Falarum di dismaio, é verdade? - pergunta, olho para a curiosidade de Zulmira e aproximo, fazendo minha barriga roncar ao sentir o cheiro do bocado sendo preparado. Abaixo o olhar e fico encarando a comida na panela funda, os outros escravos da casa receberam sua refeição da noite, mas as negras ajudando a sinhá no parto não puderam sair do quarto e ficamos a míngua. Alguém morrerá nessa manhã, pode ser a sinhá ou o bebê, mas acho mais fácil uma das escravas, principalmente a Leocádia, há poucos dias presa ao tronco.
- Dismaio pensei que ia morrer na mesma da hora. - falo para ela, Zulmira olha para mim por algum tempo e depois volta a olhar a comida, - Num sei se a sinhá aguenta, tem ventre fraco, já foram quatro anjos mortos e esse não quer nascer. - Zulmira balança a cabeça e volta a andar na cozinha quente, indo na direção do armário.
- Deus está do lado da mulher! - Zulmira afirma com fé, - Sinhá Isabel tem jeito com criança, trata o subrinho bem e merece ser agraciada com um mininu depois dessas crianças mortas na barriga. Hoje ioiô Humberto ganha uma criança, esteje certa du que digo Tetê. - viro meu corpo mais uma vez, caminhando na direção da pequena pilha de panos limpos, tinha sido para isso o motivo da minha saída do quarto e até esse momento não escutei nenhum choro de criança, apenas os gritos aflitos da sinhá.
- A criança tem que nasce sardáve, - afirmo quando já peguei os panos, Zulmira mais uma vez está esquentando a barriga no fogão, - É a última de a sinhá ter algum mininu, o doutor mesmo disse da outra vez, antes dessa gravidez. - Zulmira sorri, seu rosto deveria passar a confiança e felicidade, mas a dureza dos traços desvia desse efeito, a falta de dentes também não ajuda, apenas faz lembrar a dor da carne sangrando pelo coro.
- A senzala tudo rezou pela criança. - Zulmira fala antes da minha saída.
Vejo a luz do sol entrando pelas janelas do corredor, tocando o chão com calma e constância, deste mais moça sempre observei as cercas da fazenda ao longe, percebendo as muitas facilidades de uma fuga eminente, mesmo sabendo que depois de alguns dias os feitores conseguisse encontrar alguns dos fugitivos, deste moça sei a localização exata de um grande quilombo, até mesmo trancei seu mapa na cabeça para nunca esquecer. Mesmo com a distância da cerca e a certeza de um lugar seguro longe da fazenda de ioiô Humberto, sinto as raízes dessa terra circular meus pés com força, torcendo com energia o suficiente para pesar meus passos em todas as direções, a liberdade parece próxima, mas escuto constantemente os grilhões balançando nos tornozelos.
Olho com bastante atenção ao chegar ao final do corredor, olho para o alto antes de olhar para o chão e passar tranquila na direção da sala e seguir para as escadas. Devido à proximidade do nascimento da criança, a irmã de sinhá Isabel passou o último mês na fazenda junto ao marido e o filho pequeno. Todos na fazenda conhecem as muitas tentativas de gravidez da sinhá, a senzala sempre reza pelas almas das crianças e ela sempre monta missa para Nossa Senhora da Conceição para ser abençoada com um filho. O primeiro bebê tinha sido uma felicidade, seguida de um aborto pouco tempo depois e isso foi sucedendo a cada fetação. A cada criança sinhá Isabel passou mais tempo com o menino na barriga, se apegando ao nada.
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Amor entre Conveniência
Historical FictionBrasil, 1892. Francisca Lopes de Castro, filha de um grande produtor de café paulista, acredita fielmente que morrerá solteira. Tendo em vista que, todas as moças da região são casadas, a reclusão na fazenda também reafirma seu argumento, no entanto...