O coche da família para em frente a sede da fazenda. Enquanto papai auxilia mamãe nos degraus, dois homens começam a retirar os baús com velocidade sobre o olhar atento de Zulmira, parcialmente escondida na varanda. Observo a movimentação através da fina cortina do meu quarto, segura da figura de Isabel. Eles aproximam de Zulmira e troca algumas palavras, talvez ela esteja informando da minha chegada repentina. Rio baixinho, levando minha mão até a vermelhidão do rosto. Na noite passada estávamos iniciando o jantar e agora, nosso encontro é onde tudo começou.Olho para os pequenos movimentos de comando de mamãe, questionando-me quais motivos levaram nós duas até esse estado. Também estou ciente do quanto suas palavras irão machucar, ferir uma cicatriz falsamente cicatrizada, contudo estou disposta a sentir dor, disposta a saber toda a verdade. É estranho lembrar do meu amor por ela, lembrar de sua figura distante e ao mesmo tempo admirável. Durante a infância pensei ser natural a distância entre filhos e pais, essa era a minha realidade, até observar a interação das outras crianças com suas mães, e por vezes com os pais. Quando estavam repreendo, aquelas mães eram carinhosas e nenhuma delas tinha aquele olhar carregado, elas queria apenas ensinar algo, não diminuir.
Ergo meu olhar e fecho o pequeno espaço da cortina, criando uma boa distância até chegar a porta. Zulmira garantiu algum tempo para descanso após o banho e café da manhã, porém apenas fiquei a circular pela casa como um antigo fantasma. Procurando em cada canto, do mais escuro ao claro, todas as minhas lembranças da infância e juventude, procurando as minhas lembranças junto a mamãe e também com Tetê. Agora olho para as paredes do corredor com alguma nostalgia, sem saber quantas vezes passei por ele correndo para desespero de todos. Sem conseguir conter-me, estico minha mão até o papel de parede e toco-o enquanto caminho a passos pequenos.
— Ela sempre odiou isso. — afirmo para mim mesma, encarando os dedos seguir o caminho da parede até o corrimão da escada. Escuto os passos pesados dos meus pais junto ao de Zulmira, a voz de mamãe trás vida ao lugar, caracteriza a fazenda como sua. Suspiro cansada, ainda sou uma grande covarde mas preciso utilizar o mínimo da minha coragem e força para escutar suas palavras do começo ao fim. Mesmo sendo as mais duras e frias. No meu íntimo, torço para conseguir uma segunda chance para nós duas, uma verdadeira relação mãe e filha.
Fico parada no vão de ligação das duas salas de recepção. Zulmira é a única a conseguir me ver, enquanto mamãe retira o chapéu e capa de viagem, papai apenas limpa os sapatos no tapete. Concentro minha atenção nos movimentos curtos e fluidos, mamãe sempre foi uma mulher deslumbrante. Lembro dos olhares admirados quando fazia as pequenas recepções na fazenda, do respeito dos moradores na missa ou quando andávamos na cidade. Mamãe me isolou na fazenda e acabou fazendo o mesmo consigo. Talvez ela tenha sido feliz em sua rotina doméstica antes do meu nascimento.
— Zulmira, peça para Mercedes preparar nossos banhos e roupas limpas. — Isabel afirma, entregando o chapéu e a capa. Zulmira sorri e se afasta dela, os dois continuam sem erguer o olhar na direção da entrada, concentrados nas vestes. Alisando a saia branca, percebo o fino distanciamento dos meus pais. Eles sempre se comportam dessa maneira, sem toques simples ou conversas íntimas. Mordo o lábio, será assim o meu casamento com Aurélio, frio e indiferente. — A estrada está lamacenta e quase intransitável, por sorte chegamos com alguma segurança. Zulmira... a carruagem precisa ser limpa e os cavalos cuidados, peça a Venâncio que cuide de tudo. — mamãe segue olhando Zulmira se afastar da sala, porém, papai ergui seu olhar em minha direção.
— Francisca. — papai fala hesitante, mexo meus ombros sorrindo. Ele se empenhou tanto em levar mamãe da minha casa, nem ao menos optive uma única oportunidade de respondê-lhe as palavras de desculpas. No mesmo segundo, os movimentos de Isabel pausam e vira seu olhar em minha direção. Mamãe continua calada enquanto dou um passo na direção dos dois, papai também caminha, seus olhos seguem para o machucado no rosto. — o que faz aqui na Fazenda? Francisca, estávamos jantando na sua casa na noite anterior. — o tom de repreensão não fica escondido, mesmo assim sorrio para suas palavras, papai demonstra apenas preocupação.
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Amor entre Conveniência
Ficção HistóricaBrasil, 1892. Francisca Lopes de Castro, filha de um grande produtor de café paulista, acredita fielmente que morrerá solteira. Tendo em vista que, todas as moças da região são casadas, a reclusão na fazenda também reafirma seu argumento, no entanto...