Encarando meu reflexo no espelho da penteadeira, avalio a vermelhidão no rosto despontar como uma adição as minhas lembranças. Aurélio anda pelo quarto calado, respeitando o meu silêncio e tempo necessário para restabelecer algum controle, o som dos seus passos é aconchegante e quebra as linhas dos pensamentos. A última vez que mamãe tocou nessa maneira foi naquela tarde, e durante anos nunca imaginei voltar a essa pequena tormenta, a fúria através do couro ou seus dedos. Mesmo vendo o olhar de uma adulta, sinto ser aquela garotinha assustada e acuada.Antes daquela tarde, antes do erro na lição, minhas tentativas de agradá-la era uma obsessão infantil. Desejava um sorriso tímido de apoio por acertar as notas difíceis do piano ou as lições complicadas da preceptora, o que recebia era apenas um olhar enviesado e distante. Nada estava bom o suficiente, eu não era suficiente. Com a idade as curvas antes curvilíneas aceitáveis, tornarem maiores e volumosos e sua rejeição ficará maior, sempre presa às limitações da fazenda. O tempo trouxe nossa distância e a clareza da falta de afeto por mim, trazendo uma solidão nos momentos mais importantes.
Baixo meus olhos quando Aurélio para seus passos ao meu lado, ele percebe meu distanciamento e ainda calado, senta junto a mim no banco. Mudo minha posição para manter a segurança para ambos, ergo meu olhar e o vejo de relance. Aurélio não sorri e o vestígio de raiva ainda é presente em seu olhar, ele também olha-me com cautela enquanto estica a mão e pega a escova. Sorrio para o gesto, o ato é tão simples e íntimo e ao mesmo tempo tão atencioso, Aurélio também sorri e começa a soltar os grampos do cabelo.
— Augusto? — questiono, ele deposita a escova na coxa para melhor mexer nos fios rebeldes. Mantemos alguns segundos de silêncio durante o tempo dedicado em retirar todos os grampos e deixá-los no móvel, Aurélio para de encarar meu olhar e fita exclusivamente os meus cabelos caindo aos poucos envolta dos ombros e costas.
— Lúcia sugeriu passa essa primeira hora em seu quarto. — sussurra, tempo depois, ele aproveita a pausa e com os dedos destrói todas as ondulações criadas pelo penteado, espalhando cabelo em todas as direções, — quando acorda pela primeira vez na noite e você estiver mais calma, ele volta para nosso quarto. — Aurélio procura meu olhar e sorri outra vez, não repito o gesto. Ele assente em seguida e começa a pentear os fios com calma e leveza.
— Obrigada. — agradeço, fecho os olhos para aproveitar o toque leve dos seus dedos, como também poupar energia e reorganizar os pensamentos. O momento foi rápido e humilhante ao ponto de não conseguir questionar mamãe sobre sua fonte, talvez tenha sido alguma empregada ou até mesmo os meus gestos. Realmente não sei se uma mulher muda por completo, se seu modo de andar ou falar altera pela experiência, se seu olhar sobre o mundo ou no próprio marido delata que o casal se conheceu de maneira íntima.
— Não é necessário agradecimento, na verdade depois do que vi, não deveríamos manter vocês duas num mesmo ambiente. — fala, seus olhos ficam entre seus movimentos de desembaraçar o cabelo e meu olhar cansado, — senhor Humberto não fez nada quando lhe salvou, quando ela fez aquelas marcas em você? — baixo os olhos, observando suas pernas próximas às minhas, passando o calor acolhedor de sua pele. Sem conter o impulso, levo minha mão até o tecido de algodão e movo os dedos de maneira tímida. Aurélio nada diz.
— Ele fez mamãe prometer não bater ou tocar em mim, foi simples mas funcionou. Papai é um sujeito fechado, em todos os sentidos, mas ele demonstra de outras formas se importar comigo, talvez ame. — afirmo ainda encarando os meus dedos sobre sua perna, — ele nunca deixou claro se um dia amou ela, mas ele mostrava que gostava de mim e ouso dizer até admirar quando passava a noite escutando tocar no piano. Ele sempre era minha plateia junto a Lúcia, algumas vezes até elogiava minha evolução, e fez isso quando procurou um bom marido. Não aceitei a ideia num primeiro momento como sabe, mas reconheço, não foi uma má escolha mesmo sendo todos nós manipulados.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Amor entre Conveniência
Ficción históricaBrasil, 1892. Francisca Lopes de Castro, filha de um grande produtor de café paulista, acredita fielmente que morrerá solteira. Tendo em vista que, todas as moças da região são casadas, a reclusão na fazenda também reafirma seu argumento, no entanto...