O vento uivando é a minha única companhia nesse momento, junto com orvalho do crepúsculo. Abraço minhas pernas junto ao grande xale, permanecendo acocorada embaixo da árvore, resumida ao um bolo de tecido branco e cabelos soltos. O balançar das folhas na copa é aterrorizante, mas é disso que preciso nesse momento de solidão, assim como do frio da manhã. Depois da minha breve e dura conversa com mamãe, isolei-me no quarto durante todo o dia e nem ao menos compareci as refeições. Um encontro após nossa troca de palavras não faria bem a nenhuma das duas, sobretudo a mim.Isabel acostumou-se com a repulsa em relação a mim. Sua declaração dói mais que as surras, os abusos e falas depreciativas. É uma cicatriz em carne viva. Não há nenhuma esperança de conquistar o amor ou admiração de mamãe. Após tantos anos de tentativas vãs de agradá-la, de reconhecer a nossa mútua indiferença, encarar o fim de nossa relação é solitário. Mesmo sendo agredida constantemente, ainda tinha algo entre nós duas, mesmo sendo apenas violência e fingimento, o medo e a repulsa. Nenhuma fagulha de relação restou, finalmente demos algo de bom uma para outra, a distância.
Encosto meus quadris com força nas ramificações da árvore, depois apoio a cabeça nos joelhos e aperto o xale para cobrir um pouco das pernas. Meus calcanhares formigam pela posição escolhida, mas precisava fazer uma parada, me recompor após uma visita noturna ao túmulo de Tetê. Voltar a conversar com ela acalmou meus pensamentos em relação ao futuro, trazendo um pouco de confiança necessária para a conversa com Aurélio, quando voltar para São Paulo nesta tarde. É desconfortável encarar que nenhuma ação minha trouxe sentimentos bons à mamãe, amenizou sua primeira lembrança sobre mim e ainda assim, conseguir transmitir algo bom para uma jovem escrava de coração aberto.
Viro um pouco do rosto para ver as brumas banhando a estrutura branca e azul da sede da fazenda. O amanhecer é preguiçoso e leve na propriedade, o ar gélido faz um pequeno carinho da minha pele, demonstrando o quanto estou viva, o quanto preciso enfrentar os próximos conflitos. Não dormi muito e pretendo garantir ao menos um cochilo antes de tomar o caminho de volta à capital. Isto também assusta-me, evito pensar de todas as formas a maneira a ser recepcionada. Na reação de Aurélio a carta e a fuga, evito pensar na dor caso ele desminta sua declaração, pior ainda, não penso se tais palavras forem verdadeiras.
— Maldição. — escuto alguém falar, em seguida passos vindo em minha direção. Aperto ainda mais o xale em volta das pernas, mudo a posição do corpo para tentar diminuir o meu tamanho, me fundir a árvore.
Minhas mãos apertam a carne das coxas, suspiro girando meu rosto na direção do som. A casa onde cresci continua no mesmo lugar, ainda cercada pelas densas brumas. No entanto, Aurélio caminha ao meu encontro, seu vulto escuro na área aberta alerta-me para algo perigoso e seus passos duros afundando na terra demonstra sua determinação em encontra-me. Continuo parada no mesmo lugar, incapaz de mover um músculo para fugir. Um fuga noturna e minha carta não seria bem recebida, mas nada para motivar uma viagem. Meus olhos continuam acompanhando seu caminhar, até ele entrar embaixo da copa da árvore.
— Aurélio. — sussurro, quando suas botas para poucos centímetros longe de mim, um pequeno movimento do pé é capaz de tocar no couro escuro e gasto do calçado. Ele bufa e em seguida ajoelha-se em minha frente, ainda cautelosa ergo meu olhar e encaro seu rosto. Suspiro aliviada, é bom vê-lo outra vez, ter seu olhos verdes sobre mim, seu cheiro de madeira próximo ao meu corpo. Não importa qual será nosso destino, mas ver o rosto familiar de Aurélio é como um bálsamo, a bonança após as longas horas. — o que faz aqui na fazenda? — questiono baixinho, ele também suspira e aproxima seu corpo, até seu joelho esquerdo tocar nas minhas pernas.
— Quem deveria está fazendo essa pergunta sou eu. — ele afirma, sua voz é tranquila e nenhum pouco ameaçadora. Aurélio balança a cabeça de forma reprovativa e em seguida leva suas mãos até meu rosto, erguendo e aproximando do seu corpo. O movimento faz desequilibrar da posição, mas uma de suas mãos é rápida o suficiente para pousar na minha cintura, mantendo no mesmo lugar. — Maldição, Francisca, é perigoso estar aqui encolhida nesta árvore, uma hora dessa.
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Amor entre Conveniência
Ficção HistóricaBrasil, 1892. Francisca Lopes de Castro, filha de um grande produtor de café paulista, acredita fielmente que morrerá solteira. Tendo em vista que, todas as moças da região são casadas, a reclusão na fazenda também reafirma seu argumento, no entanto...