TRIGÉSIMO SEGUNDO CAPÍTULO

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O vento uivando é a minha única companhia nesse momento, junto com orvalho do crepúsculo. Abraço minhas pernas junto ao grande xale, permanecendo acocorada embaixo da árvore, resumida ao um bolo de tecido branco e cabelos soltos. O balançar das folhas na copa é aterrorizante, mas é disso que preciso nesse momento de solidão, assim como do frio da manhã. Depois da minha breve e dura conversa com mamãe, isolei-me no quarto durante todo o dia e nem ao menos compareci as refeições. Um encontro após nossa troca de palavras não faria bem a nenhuma das duas, sobretudo a mim. 

Isabel acostumou-se com a repulsa em relação a mim. Sua declaração dói mais que as surras, os abusos e falas depreciativas. É uma cicatriz em carne viva. Não há nenhuma esperança de conquistar o amor ou admiração de mamãe. Após tantos anos de tentativas vãs de agradá-la, de reconhecer a nossa mútua indiferença, encarar o fim de nossa relação é solitário. Mesmo sendo agredida constantemente, ainda tinha algo entre nós duas, mesmo sendo apenas violência e fingimento, o medo e a repulsa. Nenhuma fagulha de relação restou, finalmente demos algo de bom uma para outra, a distância. 

Encosto meus quadris com força nas ramificações da árvore, depois apoio a cabeça nos joelhos e aperto o xale para cobrir um pouco das pernas. Meus calcanhares formigam pela posição escolhida, mas precisava fazer uma parada, me recompor após uma visita noturna ao túmulo de Tetê. Voltar a conversar com ela acalmou meus pensamentos em relação ao futuro, trazendo um pouco de confiança necessária para a conversa com Aurélio, quando voltar para São Paulo nesta tarde. É desconfortável encarar que nenhuma ação minha trouxe sentimentos bons à mamãe, amenizou sua primeira lembrança sobre mim e ainda assim, conseguir transmitir algo bom para uma jovem escrava de coração aberto.

Viro um pouco do rosto para ver as brumas banhando a estrutura branca e azul da sede da fazenda. O amanhecer é preguiçoso e leve na propriedade, o ar gélido faz um pequeno carinho da minha pele, demonstrando o quanto estou viva, o quanto preciso enfrentar os próximos conflitos. Não dormi muito e pretendo garantir ao menos um cochilo antes de tomar o caminho de volta à capital. Isto também assusta-me, evito pensar de todas as formas a maneira a ser recepcionada. Na reação de Aurélio a carta e a fuga, evito pensar na dor caso ele desminta sua declaração, pior ainda, não penso se tais palavras forem verdadeiras. 

— Maldição. — escuto alguém falar, em seguida passos vindo em minha direção. Aperto ainda mais o xale em volta das pernas, mudo a posição do corpo para tentar diminuir o meu tamanho, me fundir a árvore. 

Minhas mãos apertam a carne das coxas, suspiro girando meu rosto na direção do som. A casa onde cresci continua no mesmo lugar, ainda cercada pelas densas brumas. No entanto, Aurélio caminha ao meu encontro, seu vulto escuro na área aberta alerta-me para algo perigoso e seus passos duros afundando na terra demonstra sua determinação em encontra-me. Continuo parada no mesmo lugar, incapaz de mover um músculo para fugir. Um fuga noturna e minha carta não seria bem recebida, mas nada para motivar uma viagem. Meus olhos continuam acompanhando seu caminhar, até ele entrar embaixo da copa da árvore.

— Aurélio. — sussurro, quando suas botas para poucos centímetros longe de mim, um pequeno movimento do pé é capaz de tocar no couro escuro e gasto do calçado. Ele bufa e em seguida ajoelha-se em minha frente, ainda cautelosa ergo meu olhar e encaro seu rosto. Suspiro aliviada, é bom vê-lo outra vez, ter seu olhos verdes sobre mim, seu cheiro de madeira próximo ao meu corpo. Não importa qual será nosso destino, mas ver o rosto familiar de Aurélio é como um bálsamo, a bonança após as longas horas. — o que faz aqui na fazenda? — questiono baixinho, ele também suspira e aproxima seu corpo, até seu joelho esquerdo tocar nas minhas pernas.

— Quem deveria está fazendo essa pergunta sou eu. — ele afirma, sua voz é tranquila e nenhum pouco ameaçadora. Aurélio balança a cabeça de forma reprovativa e em seguida leva suas mãos até meu rosto, erguendo e aproximando do seu corpo. O movimento faz desequilibrar da posição, mas uma de suas mãos é rápida o suficiente para pousar na minha cintura, mantendo no mesmo lugar. — Maldição, Francisca, é perigoso estar aqui encolhida nesta árvore, uma hora dessa.

Amor entre ConveniênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora