Porco

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Ísis está perdida em seus pensamentos, enquanto observa um horizonte sanguíneo. Mais um dia se inicia. Ainda sob o torpor que sente todas as manhãs, filosofa consigo mesma imaginando as razões da vida e da existência.

— Ísis. Vamos.

Sua irmã mais velha, Bastet, convoca-a impaciente para iniciarem a busca do dia.

Se não houver caçada, não haverá comida. Ísis sabe disso e sacode a preguiça para, rapidamente, se colocar de pé. Coloca a aljava nas costas enquanto segura o longo arco com a mão esquerda.

— Sim, vamos. Já é hora.

Saem em meio à clareira em direção às árvores da mata que se pronunciam à frente em uma grande e verdejante planície.

— Precisamos de uma boa caça hoje — Ísis rompe o silêncio.

— Sim. Pelo menos um porco. Nossas provisões de carne estão terminando.

— Verdade... e não vou aguentar mais um mês comendo raízes. — e retoma o silêncio.

Após meia hora de caminhada, Ísis esboça um sorriso e subitamente pára. Bastet assume posição de alerta sem que nenhuma comunicação entre as irmãs seja necessária. As duas se abaixam e Ísis passa a mão na relva confirmando uma pegada profunda.

— É um dos grandes. A pegada está fresca ainda. — diz em um sussurro.

Seguem caminhando abaixadas, buscando a direção que as pegadas indicam.

Chegam à borda da mata, se dividem em torno de uma distância de dez árvores, fechando um corredor do qual nada escaparia a seus olhares, olfatos e audições.

Ísis segue à direita e, em pouco tempo, não vê mais sua irmã. Sabe que está sendo acompanhada em seus passos. As duas mantém essa conexão desde pequenas e, mesmo sem se verem ou ouvirem, sentem a presença uma da outra.

O cheiro da mata toma suas narinas. A umidade da terra, após receber todo o orvalho da noite, cria uma bruma que cobre todo o bosque que como uma névoa, expressa toda a vida que pulsa naquele chão.

Ísis busca em seu flanco esquerdo, em meio a todas aquelas árvores e galhos, qualquer indício do animal que rastreiam. A corda do arco tensa e a flecha em posição esperam pelo disparo que as tirará daquela monotonia de raízes. Há dias esta é a única fonte de sustento da vila.

Ísis ouve um grunhido, imediatamente localiza em seu campo de visão um porco chafurdando com o focinho em uma poça de lama em busca de insetos, frutinhas ou pequenos animais.

Prende a respiração, retesa mais um pouco a corda colocando o máximo de força. Está certa que uma única seta poderá resolver a questão.

Coloca o bicho sob sua mira enquanto se prepara para soltar a corda, mirando o coração quando...

Voa em um golpe violentíssimo. Tão brutal, que sente seu quadril se chocar violentamente com um galho acima de onde estava. Cai de volta, com um baque seco, no chão.

Ainda tonta, procura entender o que aconteceu, quando percebe, vindo para cima de si uma enorme e descontrolada fera. Um javali, maior que o que ela tentara alvejar. Um animal cujo tamanho nunca considerou imaginar.

Mais por instinto que por qualquer pensamento, rola para trás do tronco de uma árvore e consegue se desvencilhar da primeira investida. Seu arco está fora de sua visão, caíra com o golpe, de modo que, Ísis não tem noção de para qual lado voou.

Sente o corpo doer mesmo com o sangue quente. Pensa que amanhã estará de cama, provavelmente, mas tem prioridades mais urgentes que essa... Precisa se defender do enorme animal que investe ferozmente, em mais um ataque em sua direção.

Busca a faca em sua cintura e a encontra, mas sabe que não será fácil se safar dessa apenas com sua pequena faca de destrinchar.

Se coloca entre duas árvores, com o caminho livre para o ataque direto do porco selvagem.

— Se é para morrer, que pelo menos eu deixe essa carne para meu povo — pensa.

Trinca os dentes, segura a faca com as duas mãos. Mira entre os olhos do animal. Enfurecido, o porco vem em velocidade desabalada, grunhindo e bufando.

Faltando poucos metros para o golpe, Ísis fecha os olhos e trava todo seu corpo. Como se ela mesma fosse uma lança, espera pelo choque violento da pancada.

Não sente nada.

O ataque não acontece. Ouve os guinchos do porco que agora, caído no chão, chora e berra com uma flecha em seu torso.

Olha em volta e avista Bastet, que fixamente focada no porco, saca mais uma flecha e, à meia distância, abate o animal.

— Vai ser complicado levar esse monstro. Nunca vi um desse tamanho.

— Vai... — responde Ísis caindo sentada no chão em alívio — Você viu para onde o outro foi?

— Correu mata adentro. Não temos que nos preocupar com isso. Mais urgente é como vamos levar esse.

— Vamos dar um jeito.

A Torre de Selene (concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora