Prólogo

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"Nunca confie numa raposa, Miguel", meu avô me dizia, "pode ser uma bruxa disfarçada".

        Lendas de todos os tipos me acompanharam por toda minha infância e juventude, sendo que o relato supostamente verídico de meu avô era, sem dúvida, o mais notório.

        Quando jovem, dizia ele, teria se metido a caçar uma raposa num bosque nos arredores de Coimbra. Foi seguindo rastros e pegadas floresta adentro, e conforme se embrenhava mais, sentia que era a raposa que estava no controle, brincando com ele.

        A noite caiu acompanhada de uma chuva não muito natural para o mês de julho, e só então ele foi captar um vislumbre da raposa, sua cauda desaparecendo num arbusto. Ele a seguiu, e estacou quando se viu numa clareira, diante da mais bela mulher que ele já havia visto, uma camponesa, a julgar pelas roupas. As roupas aliás, assim como os longos cachos ruivos pareciam impecáveis, a despeito da chuva.

        A mulher lhe ofereceu um sorriso malicioso e ergueu a mão, como se o chamasse. "Uma chama azul brilhou nos olhos dela, eu posso jurar", meu avô sempre dizia como se pudesse vê-la bem na sua frente.

        Uma árvore caiu bem atrás do meu avô, em chamas, e logo em seguida, toda a clareira estava em chamas, como uma gaiola ardente. "Não sei se foi coragem ou medo, mas eu saltei nas chamas e corri. Corri e caí de um penhasco, direto num rio". Nesse ponto, ele parava e contemplava o vazio, como se revivesse a cena.

         Ninguém nunca acreditou no meu avô. Não sei se eu acredito, na verdade. Os amigos diziam que um raio deve ter atingido a árvore, que ele bateu a cabeça e sonhou com tudo aquilo, que não havia raposa, não havia mulher, que não havia chovido.

        De um jeito ou de outro, meu avô nunca voltou ao bosque. Alguns anos depois, embarcou clandestinamente num dos navios que trouxeram a família real ao Brasil, junto de minha avó, e nunca mais voltou a Portugal.

        A mim, restaram suas histórias e a imaginação para retratar a cena. Só havia visto as raposas-do-campo que existem por aqui, e elas nunca me causaram grande fascínio. Há quem diga que elas nem são raposas de verdade.

        O fato é que minha história começou a ser traçada ali, no dito encontro do meu avô com uma feiticeira troca-peles. De um jeito ou de outro, real ou não, esse evento traçou o meu destino e a história que vou contar. Uma história que não se trata de uma viagem, ou do encontro com uma mulher, ou mesmo de eventos fantásticos.

        Esta história se trata de realidade, de sua essência como uma coisa viva e de nossa percepção sobre ela. Ela se trata da inconstância da vida e das várias faces da morte. Se trata do modo como abdicamos do nosso direito de entender o mundo e, sobretudo, se trata das maravilhas e dos perigos de olhar além das cortinas.

         Mas como toda história, ela começou, como dizem, do começo. O tempo passou e, para desgosto de meus pais, abandonei meu cargo como assistente do Dr. Benjamim, onde, não só ganhava um ordenado razoável, como o tinha como tutor em medicina, algo completamente fora de alcance para qualquer um que não pertencesse à elite, para me dedicar à minha paixão pelas belas-artes.

        Tento todos os dias não me arrepender dessa decisão. As pessoas não veem artistas com bons olhos, a menos, é claro, que já estejamos mortos e nossos nomes alçados à fama. Considerando a dificuldade que tenho de me alimentar, isso não deve tardar a acontecer.

         Outro problema de se trabalhar com a arte é o paradoxo. Se você não segue um estilo, sua arte não tem padrão. Se você segue um estilo, pode não estar sendo original. Encontrar um equilíbrio, criar sua própria assinatura é um desafio para qualquer artista. De qualquer forma, eu nunca fiquei confortável em trabalhar com o estilo Romântico, tão vigente naqueles dias.

        Um dia, tentei algo diferente e pintei uma bela camponesa de cachos vermelhos revoltos e cauda de raposa, numa clareira em chamas. Até o estilo era diferente, com traços um tanto exagerados e cores vivas e bem delineadas. O resultado ficou tão incomum que fiquei na dúvida se tentaria vendê-lo, pois parecia pouco provável que alguém pudesse querê-lo.

         Foi numa tarde qualquer, quando eu me encontrava numa cantina, tentando pechinchar um prato de ensopado, cuja origem da carne não tinha certeza se queria saber, por um punhado de moedas que consegui com a venda de uma pintura. Eu acabei derrubando algumas telas, entre elas, a da mulher-raposa e, ao me abaixar para apanhá-las, ouvi uma voz atrás de mim.

        — Tamamo-no-Mae?

O Conto da RaposaOnde histórias criam vida. Descubra agora