Durante os dois meses em alto mar, Dimas me preparou para o que eu iria encontrar quando aportássemos. Ele me ensinou algumas palavras, explicou alguns dos costumes do povo japonês, certos comportamentos que eu deveria evitar, sobre a culinária um tanto exótica aos olhos dos estrangeiros, entre outras coisas.
O que mais me chamou atenção, e que certamente poderia ter tido grande impacto na minha decisão de viajar, caso ele tivesse mencionado durantes as inúmeras conversas ainda no Brasil, foi que nem todos os japoneses estavam contentes com a recente abertura para o mundo exterior e os novos costumes que vinham sendo adotados.
Durante séculos, o país foi governado pelo xogum, uma espécie de líder militar reinando em nome do imperador. Com a chegada dos americanos e a abertura dos portos, iniciou-se um movimento de modernização do Japão, que visava, entre outras coisas, dar fim ao xogunato e devolver o poder ao imperador.
É claro que isso desagradava a muitos, inclusive pessoas influentes e em cargos importantes. Dentre as classes mais desgostosas com as mudanças, estava a dos Samurais, a classe guerreira, que estava vendo a sua era terminar após séculos de servidão ao país.
Dimas me contou que a habilidade desses homens com a espada era única no mundo, e que eles eram honrados e dotados de grande senso de dever. De qualquer modo, tudo o que eu não queria era encontrar um desses.
Eles estavam sendo descartados como uma faca cega e sem uso, pelas armas de fogo e sistema militar ocidentais, embora parte deles tenha aceitado se integrar na modernização. Eles certamente não ficariam muito felizes em conhecer um gaijin como eu, independentemente de onde eu tenha vindo, não que eu possa culpá-los.
Aparentemente, alguns samurais teriam abraçado a mudança e aceitados posições no novo governo, alguns até tendo aceitado o treinamento militar ocidental. Porém, e isso é apenas uma suposição minha, isso deve exaltar os ânimos, com um lado acusando o outro de traição. As pessoas chamam isso de política; eu chamo de desculpa para levar as pessoas para o abate.
Ironicamente, era na capital Kyoto, onde os conflitos eram mais intensos, que ficaríamos hospedados. O lugar devia estar inundado por empolgação, receio, ansiedade, medo e toda a sorte de emoções que deixam as pessoas sensíveis.
Não vou mentir, eu estava muito ansioso para chegar lá, mas também muito preocupado. De acordo com tudo o que eu ouvi, eu estava basicamente me dirigindo para outro mundo. Mas é como dizem: o importante não é o destino, mas a jornada. Acho que eu deveria ter presumido que, considerando a minha jornada, eu precisava estar bem preparado para o meu destino.
Um dia, quando contornávamos a Índia, reparei em Raio recostado na amurada. O marinheiro Raio, na verdade se chamava Raimundo e ganhara esse apelido, segundo me disseram, por causa de sua agilidade. Agilidade que eu pude comprovar com meus próprios olhos conforme ele corria de um lado para o outro e escalava os mastros.
Raio era uma das poucas pessoas, além de Dimas, com que eu falava naquele navio. Era bem jovem, provavelmente nem tinha chegado à idade adulta, mas era um marinheiro experiente, praticamente fora criado num barco. Era como uma versão jovem e de rua de Dimas, agradável, tinha boas histórias, mas era bom ter cautela com o que se dizia a ele, pois ele não levava desaforo para casa.
Nos últimos dias, Raio parecia um tanto taciturno e quando me aproximei dele, reparei que ele literalmente encarava o mar com olhos pouco amistosos e, ao mesmo tempo, parecia que procurava alguma coisa.
— Perdeu alguma coisa no mar, Raio? — Eu arrisquei perguntar.
— Alguma coisa, não — ele respondeu sem desviar o olhar. — Alguém.

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O Conto da Raposa
FantasyATENÇÃO! Este livro será removido em breve. Vencedor do Prêmio Wattys 2021 na categoria Ficção Histórica. O que é realidade? Eu sempre me esforcei para resumir a realidade ao universo palpável, a tudo aquilo que a sociedade descreve como normal. Tud...