A sensação de estar flutuando era, ao mesmo tempo, reconfortante e desesperadora. Eu não sentia o peso do meu corpo, sentia que poderia ir para cima, mas agora tinha a impressão de estar caindo lentamente. Eu podia ouvir sons indistintos, mas a minha audição estava abafada.
— Foste tocado pela mácula da morte — uma voz soou na minha cabeça, trazida de uma memória não muito distante. — Faz-se mister que te purifiques.
A imagem da mulher veio em seguida, alta, de traços orientais, longos cabelos negros que contrastavam com sua pele clara, expressão austera, trajes tradicionais japoneses brancos com detalhes em vermelho e uma coroa dourada com o símbolo do sol. Ela invocava uma memória ainda mais distante de uma pintura que eu posso, ou não, já ter visto um dia.
— Em prístinas eras, também meu pai fora acometido por chagas tão ominosas — a mulher continuou. — E nas águas impolutas deste rio, ele se purificara e foi quando meus irmãos e eu nascemos.
A entidade teria me conduzido até a margem do rio e sugerido que eu entrasse na água. O curso de água era tão cristalino que eu podia ver o fundo quase claramente. A profundidade não era grande.
— Se eu fizer isso, eu poderei voltar à vida? — Eu teria perguntado.
— Este não é o intuito da purificação — foi sua resposta. — O que buscamos aqui é purgar o espírito.
Minhas memórias ficam confusas a partir daí. Eu teria caminhado até o meio do rio e submergido por completo. A torrente então teria ganhado força e me arremessado a vários metros até eu perder a consciência.
O que aconteceu antes, o que aconteceu depois, minha memória não entregava nada. E também, agora isso parecia irrelevante. Tudo parecia calmo enfim. Será que eu estava morto? Ou quem sabe eu estava de volta ao ventre, esperando para nascer de novo.
A pressão aumentou, a urgência para respirar. Eu abri meus olhos. Eu estava na água, afundando, acompanhado por cardumes de peixes por todos os lados. Guiado por uma luz inconstante que ia e vinha lá em cima, eu nadei até achar que meus pulmões iam explodir.
Não restava dúvidas, eu estava no mar. O céu parcialmente nublado tinha um tom índigo, indicando que a alvorada se aproximava. A única luz vinha de um farol distante. Felizmente, eu não estava muito longe da praia.
A essa altura, eu ficaria feliz se a raposa aparecesse para apontar a direção, mas parece que eu estava sozinho desta vez. Meu único ponto de referência era o farol, então isso teria que bastar por ora.
A faixa de areia se estendia por pelo menos dois quilômetros, a maré recuava lentamente, produzindo uma melodia constante e inquietante ao avançar pela praia e voltar. A areia, eu pude reparar graças à luz lançada pelo farol, era branca e bem fina. O caminho começou a se inclinar, me guiando para o promontório que comportava o farol.
Aos pés do farol, uma figura encapuzada me aguardava. Coberto por um manto negro, o homem corpulento se apoiava numa longa foice. De seu rosto, eu mal tinha um vislumbre de seu queixo.
— Enfim chegou, Miguel — o homem disse, com uma voz grave de barítono. — Você conseguiu escapar de mim por um bom tempo. Por isso, eu o parabenizo.
Quando a luz dançou sobre nossas cabeças, eu pude reparar que o homem não era necessariamente corpulento. Ao notar minha ciência, ele abriu um par de asas negras que estavam dobradas sobre seu corpo, revelando uma anatomia bastante delgada.
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O Conto da Raposa
FantasyVencedor do Prêmio Wattys 2021 na categoria Ficção Histórica. O que é realidade? Eu sempre me esforcei para resumir a realidade ao universo palpável, a tudo aquilo que a sociedade descreve como normal. Tudo o que não se encaixa nesse contexto só enc...