Minha relação com sonhos sempre foi um tanto turbulenta. Alguns dizem que sonhos nada mais são do que nosso subconsciente projetando o que existe de oculto em nossa mente, sendo, portanto, o nosso momento de maior criatividade. Quando se é uma criança criativa, tudo o que seu subconsciente faz é criar toda sorte de monstros para lhe assombrar à noite.
Também há quem acredite que sonhos nos enviam mensagens, e que os acontecimentos que presenciamos durante o sono podem ser traduzidos de forma diferente na vida real. Sonhar com merda significa dinheiro, e se uma cobra aparece em seus sonhos você será vítima de uma traição na vida real, contudo, se a cobra for morta no sonho, você passará ileso pela traição. Sinceramente, eu não sei quem escreveu esse dicionário.
Há ainda quem acredite que os sonhos são na verdade um reino, um plano existencial regido por suas próprias leis. Nesse reino, você pode transitar e visitar o sonho de outras pessoas, se comunicar, aprender, ou mesmo, em certo grau, afetar a realidade.
Eu ainda me lembro de um sonho que tive quando era muito pequeno. Era noite e eu estava perdido na mata. Em minhas mãos eu levava um cavalo de madeira do qual eu raramente me separava. Tudo o que eu ouvia eram meus próprios passos esmagando galhos e folhas e o piar de uma coruja que soava como se estivesse empoleirada em meu ombro.
Em determinado momento, um brado lamuriento pareceu ecoar de todas as direções, um som tão macabro que eu consigo me lembrar ainda hoje. Eu corri, sem saber exatamente em que direção e a certa altura eu já não tinha mais o cavalo nas mãos, devo ter deixado cair. Só parei quando uma voz suave chamou meu nome de forma tranquilizadora. Uma luz tênue então surgiu por entre as árvores e eu a segui até encontrar a saída, onde meus pais me esperavam.
Nesse ponto o sonho acabava, mas embora eu fosse muito pequeno, eu ainda me lembro de como tudo naquele sonho tinha uma atmosfera que não era típica dos sonhos, o modo como certos detalhes podem ser notados para discernir ambos os mundos, a ativação dos sentidos, tudo era curiosamente real.
O mais curioso é que eu me lembro de nunca mais ter encontrado o meu cavalo de brinquedo depois daquele sonho. Por várias vezes pensei em perguntar aos meus pais se aquilo tinha acontecido quando fiquei mais velho, mas por vários motivos eu tive medo.
Esse sonho me voltou à memória várias vezes depois que sonhei com a mulher no barco. Esse último também tinha sido bastante real, mas de um modo diferente, talvez porque eu me lembro do momento em que despertei, deixando claro a ponte entre sonho e realidade, mas mesmo assim, tinha sido algo bastante sensorial, por falta de uma palavra melhor.
Desde então, um alívio. O sonho mais estranho que tive nos últimos dias foi sobre melancias.
Durante os dias que se seguiram eu continuei com a minha nova rotina, saindo cedo e ajudando comerciantes com todo tipo de tarefa. Aprendi algumas palavras novas, fiz alguns amigos e juntei cada moeda que ganhei. Cheguei a fazer alguns trabalhos para um artista e ele me recompensou com um pouco de tinta, o que me deu uma ideia.
Negociei alguns materiais de pintura com um comerciante francês e comecei a trabalhar num quadro, um cavalo empinando-se, misturando o meu estilo com um pouco do estilo Ukiyo-e, sem a parte dos blocos de madeira, é claro, talvez um dia eu tentasse assimilar melhor a técnica.
A seleção de cores não era muito rica, pois eu não podia pagar por muita coisa, mas o resultado estava sendo satisfatório. Dimas me observou pintando com um sorriso de satisfação.
— Se tivesse me pedido, eu teria comprado essas coisas para você.
— Não posso pedir que pague por esse tipo de coisa por mim, Dimas — eu disse, sem tirar os olhos da tela, acrescentando detalhes à crina. — Eu já desfruto de mais hospitalidade do que me é devida.

VOCÊ ESTÁ LENDO
O Conto da Raposa
FantasiaATENÇÃO! Este livro será removido em breve. Vencedor do Prêmio Wattys 2021 na categoria Ficção Histórica. O que é realidade? Eu sempre me esforcei para resumir a realidade ao universo palpável, a tudo aquilo que a sociedade descreve como normal. Tud...