6 - Olhos

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"Histórias serão contadas, aventuras desvendadas, neste palco onde irão testemunhar", dizia o líder da trupe de artistas itinerantes que passara pela cidade há muito tempo, eu não devia ter mais do que dez anos. "O louco e o são, ambos perguntarão se seus olhos estão a ludibriar".

        O que se seguiu foi uma encenação de Hércules matando a Hidra, uma peça surpreendentemente bem elaborada, cheia de efeitos especiais, com direito à besta cuspindo fogo. Não me lembro de nenhuma menção à Hidra ser capaz de cuspir fogo, mas isso certamente fez o público suspirar de fascínio. Talvez meus olhos estivessem a ludibriar.

        Perguntei ao meu pai o que significava ludibriar, e pelas semanas seguintes, essa foi a minha palavra nova. Eu a repetia sempre que podia e criava oportunidades para dizê-la quando não podia. Porém, a frase toda ficou na minha cabeça por um bom tempo, "o louco e o são, ambos perguntarão se seus olhos estão a ludibriar", e de tempos em tempos ela volta.

        Certa vez, perguntaram a um homem em quem ele mais confiava, ao que ele respondeu: "na minha santa mãezinha, que Deus a tenha". E então perguntaram em quem ele menos confiava, e ele disse: "nos meus olhos que a terra há de comer".

        Há certo sentido no que ele quis dizer com isso. Nossos olhos não são muito rápidos e leva algum tempo para que a mente interprete o que vemos, e além disso, a nossa interpretação é afetada pelo que entendemos do mundo. Eu teria mesmo sido atacado por uma raposa? Raio teria mesmo visto uma sereia levar seu irmão?

        De qualquer modo, essa frase voltou a minha mente naquele dia, quando eu tentava discernir o que exatamente eu estava vendo, se eu estaria olhando na direção certa ou mesmo pelo ângulo certo.

        — O que é... essa coisa? — Eu perguntei com uma sobrancelha erguida e virando a cabeça.

        A pintura descrevia uma criatura de olhos finos, tromba de elefante, cauda de boi e patas de tigre, envolta pelo que parecia ser fumaça, ou talvez nuvens num cenário onírico. Dimas riu da minha expressão.

        — Eu tive a mesma reação que você quando o vi pela primeira vez — ele disse. — Esse é o Baku, o devorador de sonhos. Essa versão é um tanto grotesca, mas eu já vi uma mais simpática em que ele se assemelhava mais a uma anta.

        — Seja o que for, eu acho que prefiro ele longe dos meus sonhos.

        — Na verdade, é bem o contrário – o comerciante comentou. — Segundo a lenda, ele teria o poder de transformar pesadelos em boa sorte. Você acorda de um pesadelo e diz: "Dou o meu sonho para o bom Baku comer", e pronto. Boa sorte.

        — Sério? — Eu disse, rindo. — Onde ele esteve a minha vida toda?

        Estávamos na casa de um comerciante conhecido de Dimas, um holandês de nome Wout Reiziger. Apesar dos duzentos anos de reclusão, o país ainda mantinha comércio com alguns holandeses, e o homem foi um dos primeiros a se instalar ali após a abertura.

        Reiziger era colecionador de artes, embora Dimas tenha me alertado de que nem todas podem ter sido obtidas de forma lícita. Nesse meio, isso não era nenhuma novidade.

        Sua coleção contava com algumas obras de autores japoneses, incluindo representações de seres folclóricos, como o Baku, a serpente de oito cabeças Yamata no Orochi, e Yaobikuni, a tal garota que teria se tornado imortal após comer carne de sereia da qual Dimas falou, e que reacendeu o que ele dissera na nossa primeira conversa, sobre lendas reaparecendo por todo o mundo.

        Imagens místicas e sacras do mundo todo também marcavam presença. O deus nórdico supremo, o herói sumério, a deusa hindu da destruição, todos juntos no que compunha a festa mais eclética que Dionísio, também presente, já presenciou.

O Conto da RaposaOnde histórias criam vida. Descubra agora