Aplicou o batom vermelho nos lábios carnudos na frente do espelho. O delineador foi difícil de fazer, mas Natalie já tinha prática, pois Ada sempre lhe ensinava novos truques de maquiagem. Analisou as unhas vermelhas compridas e recém pintadas de perto. Por fim, ajeitou os cabelos negros de modo que caíssem em ondas pelos ombros e, antes de sair, não conseguiu evitar olhar-se de lado no espelho.
Não tinha comido nada e a barriga roncou ao pensar em comida.Agradeceu por ter controlado a urgência de encher o estômago, pois estava magérrima, com uma barriga reta e quase negativa. Lutava para não repetir tanto para si mesma que a fome era uma consequência de ser magra. O terapeuta havia lhe dito que não era saudável cultivar aquele tipo de mantra e que, ao invés dele poderia perguntar-se por que era tão importante ser magra. Mas não gostava de responder a essa pergunta.
Sua obsessão com o próprio corpo não havia começado após o namoro com Marc, mas tinha piorado após o relacionamento começar. Antes de namorá-lo Natalie teve outros namorados, paixonites nada importantes, e durante também tinha sofrido com distorções da própria imagem corporal.
Sua magreza não era genética, sabia bem disso, pois tinha sido uma criança gorda. A mãe era magra com muito esforço e fazia de tudo para manter o peso, desde dietas loucas até tomar remédios nada saudáveis.
Natalie cresceu com a mãe lhe dizendo que precisava emagrecer. Quando ia aos nutricionistas, desde 9 anos de idade, todos lhe diziam a mesma coisa: teria que emagrecer para ser saudável. Mas gostava de comer chocolates e as comidas verdes lhe enjoavam, além disso odiava exercitar-se. Então a adolescência veio. E viu, ao seu redor, a atenção dos garotos ser depositada em meninas magras, populares e maldosas.
Muitas noites Natalie ia dormir chorando e pedindo a quem quer que fosse que pudesse emagrecer de uma maneira rápida. Então, após passar anos sendo excluída na sala de aula, sendo alvo de piadas por parte de outras garotas, motivo de risada dos garotos, decidiu parar de comer. Se não emagrecia com as dietas que os especialistas lhe davam, precisava tentar algo drástico. Tudo aconteceu durante as férias da escola, quando estava no primeiro ano do ensino médio.
Seria fácil emagrecer se não comesse. Foi fácil. E rápido. Em 1 mês tinha perdido mais de 12 quilos. A mãe começou a lhe elogiar, o pai a tratá-la melhor. Os elogios que começou a receber moldaram sua nova personalidade. Porque já era outra pessoa. Então, quando voltou para a escola, todos ficaram chocados com sua transformação. Natalie começou a usar aquilo ao seu favor. Subitamente todos queriam ser seus amigos. Mas os ignorou. Faria da sua presença algo dado a poucos. E foi assim durante todo o ensino médio.
Então conheceu Marc num evento. Tudo parecia estar finalmente dando certo. Conseguiu o namorado perfeito, que agradaria aos pais e a si mesma: lindo e rico. Mas ele começou a lhe sugerir certas coisas e sua insegurança, que sempre estivera ali, voltou com mais força. Começou a comer mais quando o namorado disse que queria experimentar coisas novas. Pensou que houvesse algo errado com o próprio corpo e, como estava comendo mais, resolveu colocar para fora tudo o que ingeria, com medo de ganhar peso. Tornou-se difícil não comer. Transformou-se nervosa e ansiosa.
E quando pesquisou sobre os gostos de Marc ficou tão enraivecida que quase bateu nele. Isso tudo depois de já sofrer uma desilusão ao descobrir que ele gostava de homens também. Não era mais seu namorado perfeito. Jamais faria aquilo que ele queria. Triste, deitada no quarto, passou horas pensando sobre o que tinha lido. Algumas pessoas eram dominadoras... Outras submissas... Franziu o cenho com vergonha. Se fosse escolher um papel para si não seria o de submissa. A ideia de ter controle sobre tudo lhe agradava mais. Mas Marc havia deixado claro que aquele seria o seu papel.
Então tiveram que terminar. Ele começou a tornar-se mais frio e desinteressado. Se não fosse do jeito dele Marc não ficaria satisfeito. Parecia uma criança de pirraça, emburrado até conseguir o que desejava.
Suspirou ao passar os dedos pelas madeixas compridas. No celular, mensagens de garotos com quem havia desistido de conversar se acumulavam. Eles lhe entediavam com suas conversas rasas. Quando era direta pareciam se esquivar, chocados demais com sua atitude. E quando se envolvia mais profundamente com qualquer um deles, falava sobre seus desejos íntimos, que não revelava a muitas pessoas. Após isso eles sumiam. Nenhum estava disposto a fazer aquilo. Mas Natalie sempre tivera curiosidade, desde o namoro com Marc. O que havia de tão especial naquele fetiche?
Como iria realizar seu sonho de ter um namorado que agradasse aos pais e estivesse disposto a fazer tudo do seu jeito? Porque, com o tempo, Natalie havia lido bastante e aprendido que não precisava se humilhar para nenhum homem, não quando podia fazê-los se humilharem. E, no fundo, gostava de controlar todas situações que lhe envolviam.
Tinha algo em comum com Marc, pensou com tristeza. Mesmo que houvesse passado tanto tempo desde que terminaram, ainda assim ele despertava a garota ingênua que ainda era. Então, o provocava para esconder o quanto ele mexia consigo. Além disso, pensava, era o que ele merecia por ter sido um péssimo namorado. Encontrá-lo na faculdade foi um choque e mais ainda ao vê-lo namorando Archie. Se ao menos tivessem se conhecido anos depois...
Mas não podia gastar tanto tempo pensando nele. Tinha um encontro para ir. John era seu tipo, mas certamente não agradaria aos pais. Entretanto, Natalie precisava pensar em si. Já tinha um apartamento mobiliado, mas havia prometido morar com os pais por um ano enquanto trabalhasse na empresa. Mesmo assim precisava pensar no futuro: queria uma família, um desejo que também revelava seu medo de ficar sozinha.
Acima de tudo isso também tinha aquele seu outro lado, do qual não abriria mão. Queria explorá-lo e John seria perfeito, se soubesse levá-lo aonde queria.
Os lábios não estavam tão vermelhos como queria. Passou outra camada do batom favorito e deu um sorrisinho para si mesma, imaginando que John lhe admiraria de queixo caído, como um cachorrinho.
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Toques
Short StoryA vida doméstica de Marc e Archie. Os dilemas de Finn e Leonard. Fragmentos da vida de Natalie, Ada e Julian. Lembranças do passado dos personagens. Tudo aqui escrito aconteceu/acontecerá na história, mas sem ordem cronológica. Feita para os leitore...