"Mas depois Davi ficou com remorso por ter cortado a ponta do manto de Saul."
Como o vento que se joga contra tudo que estiver à sua frente; como as ondas que dançam sobre o mar, despencando sobre ele por inteira; como as brisas que vêm sussurrar qualquer coisa em nosso ouvido, depois de ter atravessado tudo; como a noite pertence ao breu e é penetrada por ele até ser sua por completo, assim éramos nós àquela noite. Pertencíamos e nos dávamos um ao outro como loucos. Loucos que decidiram, por algumas horas, burlar as regras da sua fé só para ter um momento de satisfação.
Seu corpo suado se esfregava no meu. Era o desejo se derretendo no fogo dos meus braços, do meu peito e do meu corpo inteiro. Nós tremíamos de nervosismo, mas por nem um momento ele hesitou em me segurar com força e me encher com toda a vontade que estava de me ter daquela forma.
Aquela noite era só nossa, tudo nos levou até aquele momento. Nós não queríamos desperdiçar sequer um mísero segundo. Queríamos ser só um do outro durante aquela noite inteira até o Sol nascer. Não nos importamos com nossa posição religiosa, não lembramos que um homem não se deita com outro sendo um cristão. A Bíblia, o manual da religião, não aprova e até abomina tal ato. Mas tudo pareceu ter se esvaído para bem longe de nós. Tínhamos um ao outro e isso era tudo o que eu queria. Não sei o que aconteceria depois, mas agora eu estava satisfazendo um desejo que por muito tempo tentei matar; ouvindo a voz que tanto gritava em mim nos momentos mais agustiantes que já passei. Ser um gay cristão não era fácil pra mim, e sei que não é fácil para os outros também. Conheço alguns que lutam desde a adolescência até seus trinta e poucos anos. Eles dizem que foram libertos e até agradecem a Deus por isso, mas, na verdade, são mentirosos. Chegam até a se casarem com mulheres, mas eu sei que, quando ninguém está vendo, eles passam pela mesma angústia; sei que suas orações também são para que Deus os afaste da tentação a qual, eu tenho certeza, ainda é um homem; que, quando não aguentam mais tanto desejo, vão em busca de qualquer um que possa satisfazê-los. É tudo uma farsa deles, nunca foram libertos de nada. E, embora existam alguns que realmente tenham parado de ficar ou pensar em ficar com homens, muitos continuam lutando desesperadamente contra isso.
Acordei com o silêncio da manhã gritando em meus ouvidos. Antes de pegar no sono, eu havia internalizado que aquela era a hora certa para acordar e ir embora. Meu cérebro e todo o resto do corpo concordou com esse pensamento, fazendo-me abrir os olhos antes que a família dele despertasse, no entanto, meu companheiro não compartilhava da mesma rigidez e disciplina que eu quanto ao horário certo de acordar.
Olhei seu corpo mórbido do prazer que a noite passada nos proporcionou, pesadamente adormecido. Lembrando-me do enorme delito que havíamos cometido, apertei as pálpebras com as mãos como se quisesse afundar aquelas lembranças no inconsciente até esquecê-las. Agora tudo parecia ser torpe, um erro premeditado que eu tanto havia sido advertido a nunca cometer. Segundo as palavras de um dos pastores que passaram pela igreja da qual faço parte, é bem mais fácil receber o perdão de um pecado cometido de forma ingênua ou que venha sem que a gente tenha conhecimento de que possa acontecer, do que de um que fora todo pensando minuciosamente até sua execução. Por uma noite inteira, eu encontrei a calmaria em realizar os meus desejos, mas a perdi no momento em que percebi que os havia tornado reais. E com a mesma rapidez que fui feliz, vi minha felicidade ir embora, dando lugar a uma estranha inquietação na alma. Daniel estava ali ao meu lado, era a prova de que eu não estava sonhando, prova suficiente para me condenar a um novo martírio, o medo de ter estragado toda a vida dele.Agora, um novo conflito se formava em mim: acordá-lo e ver seu arrependimento ou não acordá-lo e sermos pegos em sua cama. Ao desenhar as duas possibilidades em minha mente, tive um pequeno tremor causado pela segunda opção. Então decidi, eu tinha de acordá-lo.
- Dani? - disse, ao balançar seu braço. Minha voz estava trêmula, porque nela havia todo o peso do medo de alguém estar ouvindo.
Ele logo abriu os olhos, passando a mão direita sobre o rosto, tentando afastar o resto do sono que ainda lhe fazia hesitar. Vi ali uma expressão indiferente, acho que era uma forma de ele me dizer que não queria ter me visto ao acordar. Talvez fosse melhor pra ele se eu tivesse ido embora antes de o Sol aparecer, lhe dando a graça de não ter que me ver depois de uma noite pecaminosa.
- O que é? - disse ele.
- Eu tenho que ir embora.
Não disse mais nada, apenas levantou-se, vestiu a calça e caminhou até a sala. Eu, logo atrás, o seguia com o mesmo cuidado que ele tinha ao caminhar sobre o assoalho amadeirado. Casas assim têm o incrível e incômodo hábito de ranger com qualquer passo que se dá em seu chão. Mesmo com todo o nosso cuidado, ainda era possível ouvir os gemidos que a madeira fazia a cada passada que dávamos.
- Então... vamos nos ver hoje? - perguntei ao chegar do lado de fora da casa.
A manhã estava calma. Era a primeira vez que eu estava ali naquele horário, então eu dei uma olhada em volta só para registrar como tudo por ali ficava ao amanhecer.
- Não sei. - disse ele friamente. Eu sabia que nós ficaríamos estranhos logo depois, mas ele me tratava com uma indelicadeza tão grande que nem consegui olhar em seus olhos, até porque ele não olhava nos meus.
Seu rosto estava fechado, como se seu remorso lhe desse raiva de mim ao invés de si próprio como era o meu caso. Eu sabia que haveria a vergonha do que cometemos, pois geralmente era o que eu e a pessoa com quem eu ficava sentíamos, mas como ele me tratava até aquele momento era cruel. Perceber o seu olhar fugindo de qualquer forma do meu só me deixou mais aflito e mais triste. "Realmente, eu acabei com a vida dele", pensei.
- Está bem. Eu... - minha voz falhava um pouco, por causa do nervosismo que ainda estava apoderado de mim - já estou indo embora.
Ele apenas balançou a cabeça. Não houve abraço, diferentemente de todas as outras vezes que nos despedíamos quando ninguém estava a nos olhar. O meu "tchau" cheio de preocupação e compaixão por ele foi correspondido com um seco, frio e indesejável dele.
Fui saindo, imaginando que aquela seria a última vez que teríamos uma conversa, a última vez que eu o veria logo após acordar de manhã cedo. Ele estava arrependido com certeza, eu também estava. Nem era tanto por mim, era mais por ele, por ter visto a forma como fui tratado. Meu coração doía pior que antes, quando eu só sofria por não ter o Daniel. Agora, eu sofria por não poder tê-lo e por tê-lo tido. Um abismo onde quase ninguém deseja estar, eu estava enterrado no fundo.
O remorso espumava em mim como lava recentemente adormecida. Eu tinha acabado com a minha e com a vida dele.
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[EM REVISÃO] O Fruto Proibido
RomanceCapa feita por: @pequena_boneca007 Este não é um livro sobre uma história de amor entre dois homens, vai além... é envolvente e rigorosamente pensado. Um jovem cristão, fervoroso em sua missão de evangelizar, vê sua fé e determinação desmoronarem qu...