Capítulo 20

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Acordei às oito horas da manhã. Tinha uma mancha na fronha do meu travesseiro, certamente causada pelas lágrimas da noite anterior. Levantei apressada, vesti um robe cor de pêssego e, descalça, fui procurar por tia Carmen. Não pensei duas vezes antes de ir procurar no lugar mais óbvio: a cozinha. A cada passo, ia tentando me lembrar do que tinha acontecido na noite anterior, mesmo tendo quase certeza de que não era ela lá no meu quarto.

A cozinha estava vazia, tinha apenas um bule sobre o fogão. A mesa continuava organizada, provavelmente como havia sido deixada depois do jantar, se é que havia tido jantar. Tia Carmen fazia suas refeições muito cedo, e eu a acompanhava, mas sempre comia algo antes de dormir, senão quisesse acordar de madrugada com a barriga roncando de fome. Fazia quase dois dias que eu não comia absolutamente nada. Me perguntei como estava aguentando. Peguei uma pera na cestinha de frutas sobre a mesa e continuei minhas buscas pela tia. 

O quarto dela também estava vazio, a cama bem arrumada. Me aproximei e passei a mão na colcha de algodão; era a favorita dela. Não usava com muita frequência, mas eu já tinha visto muitas vezes. A cor bege dava uma ar muito agradável com meu robe, combinava bem. Fechei os olhos ao sentir o cheiro de jasmim. Era o cheiro dela, do quarto, das suas roupas. Cheiro de tia Carmen. Fazia um bom tempo que não ia ao quarto dela. Lembrei dos primeiros dias após a minha mudança. Embora tivesse o meu próprio quarto, gostava de dormir com ela algumas vezes, só para sentir aquele cheirinho.

Apesar das lembranças serem muito agradáveis, não eram capazes de substituir a angústia do meu peito. Traziam leveza por alguns instantes, mas, a realidade voltava como um choque. Era um aperto que machucava, travava as minhas reações e me empurrava para o buraco interminável de sensações horríveis outra vez. 

Comecei a ficar preocupada. Àquela hora, ela deveria estar cozinhando ou vendo seus programas de culinária na tevê, enquanto bordava. Chamei por ela perto dos banheiros: sem resposta. Eu estava sozinha em casa. Já ia voltar para o quarto e procurar por meu celular, talvez ela tivesse deixado algum recado, mas não foi preciso, ouvi a porta da frente bater. 

— Tia Carmen? 

Andei apressada para encontrá-la e nos esbarramos no corredor. 

— Bom dia, meu bem. Como se sente? 

Olhei para ela que carregava algumas sacolas de plástico, outra de papel e um par de galochas nas mãos. 

— Onde estava? — perguntei. 

— Fui à padaria — disse, enquanto se dirigia à cozinha. Segui. — Acredita que o doce de goiaba acabou? Pensei que fosse ter mais tempo para fazer seu bolinho, antes que acordasse. Mas, aqui está. Vou fazer. Não deve demorar. Está com muita fome? 

— Ah. Não precisa ter tanto trabalho. Eu já comi uma fruta. 

— Não se preocupe. — Ela sorriu. — É bom te ver de pé. 

Observei-a tirar as compras da sacola. Parecia preocupada. Disfarçava muito mal. Eu sabia que sua preocupação era dirigida totalmente a mim.

— Tia... Posso te perguntar uma coisa?

— Claro — respondeu, erguendo a cabeça rapidamente.

— Ontem à noite... Você voltou ao meu quarto? 

Ela parou o que estava fazendo e me olhou com uma expressão ainda mais preocupada. 

— Não se lembra? Eu te levei até a cama. 

— Sim, eu me lembro disso. Pergunto, depois que saiu, você não retornou?

— Não. Tive medo de acordá-la. Por quê? Queria minha companhia? Poderia ter ido ao meu quarto. Sabe, eu amo quando você aparece por lá sem avisar... 

Parei de prestar atenção do que ela dizia e, mesmo que não estivesse surpresa, foram-se as minhas esperanças de que fosse ela quem tinha me dito aquelas coisas. Tive medo de estar delirando; o álcool podia ter causado alucinações ou um sonho. Mas parecia ser tão real. E se fosse verdade mesmo? E se ele ainda me amava? Eu daria muita coisa para saber.

Tia Carmen continuou muito inquieta, ficava andando de um lado para o outro, como se não soubesse por onde começar. Eu, a conhecendo muito bem, sabia que sua única preocupação não era apenas fazer um café da manhã o mais rápido possível. Além de que estava evitando contato visual e olhava com frequência para a sacola de papel que havia deixado no chão.

— Você não me engana — falei.

— Do que está falando — perguntou, bancando a desentendida.

— Está me escondendo alguma coisa, eu sei!

Ela, por sua vez, já estava sorrindo desconfiada, o que me também me fez rir, apesar da preocupação.

— Espero que não fique zangada, sei o que quanto odeia bagunça, mas apenas pensei que isso pode te fazer sentir melhor.

ela continuava encarando a sacola. Resolvi me aproximar para ver o que tinha lá dentro. Dei um pulo para trás, quando a sacola se mexeu. Olhei assustada para a tia, mas logo entendi o que estava acontecendo, quando uma bolinha de pelos saltou impaciente para fora da sacola.

— Um gato, tia Carmen? — perguntei em meio ao riso.

— Uma gatinha! Ela não é linda? Eu a vi abandonada na rua, não consegui deixá-la para trás, além de que será uma ótima companhia para você.

Hesitei por um tempo, eu tinha um certo receio de criar animais de estimação, pela bagunça que geralmente fazem e a responsabilidade que nos é exigida para cuidar bem deles. Mas não pude resistir à gatinha siamesa de olhinhos azuis. Ela logo tratou de explorar a cozinha inteira e atacar tudo o que via pela frente. Minhas preocupações se aquietaram um pouco e eu dediquei toda a minha atenção a ela durante o café. Até que ela se recolheu num cantinho e pegou no sono, me dando espaço para pensar novamente no que tinha acontecido na noite passada, com o coração apertado. 

Depois do café, peguei a bolinha de pelos e voltei ao quarto, ainda preocupada para variar. E assim seguiam as semanas e os meses. Os dois primeiros foram os mais difíceis. Eu esperava por respostas, pela volta do Josh, como se isso fosse acontecer num piscar de olhos, por uma varinha mágica que pudesse mudar a realidade e trazer ele para perto de mim. Perdi a conta do número de vezes em que saí na rua, sem rumo algum. Não tinha noção das horas nem do dia em que estava na semana. Tinha esquecido em qual sinal o pedestre deve atravessar a rua: vermelho ou verde? Parei de sair, depois de quase ter sido atropelada por um carro, resultando em mais tempo trancada dentro do quarto. Passava dias sem tomar banho e bebia com frequência. Mas, de fato, as coisas mudaram e melhoraram com o tempo. Não que ele tenha sido o responsável, eu quem fui. A terapeuta me disse, inúmeras vezes que compreendia meu sofrimento, entretanto, se eu me recusasse a reagir de uma forma mais positiva, meu quadro poderia piorar, e sair daquilo seria muito mais difícil no futuro. Também me convenceu de que tudo o que acontece — por mais clichê que isso pareça ser —, resulta em crescimento. A bagagem era minha e cabia unicamente a mim, carregá-la com respeito e paciência, persistindo em crer que, no processo, eu poderia transformá-la em amadurecimento.

À minha gatinha, eu dei o nome de Lola, minha companheira de todos os momentos. Tia Carmen estava certa quando disse que ela me ajudaria. Um serzinho tão pequeno e inocente, de coração tão puro era capaz de me transmitir muito amor e esperança de dias melhores.

Alguém Me DisseOnde histórias criam vida. Descubra agora