1. INCIDENTE NA ESTRADA

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— ESSE MUNDO está perdido! — exclamou Helena, horrorizada.

Daniela entrou na cozinha para pegar um pacote de bolacha e sua madrasta estava com a televisão ligada, vendo uma reportagem no jornal do final da tarde. Não era uma lei natural feiticeiros serem sempre lindos. Alto, negro e com o cabelo escuro mais curto nas laterais e cheio no alto, Daniel não se parecia com algum príncipe encantado das historias, talvez nem fosse bonito, entretanto, sua madrasta Helena, parecia uma deusa nórdica. Alta, tinha naturalmente um porte altivo. O rosto era delicado, com nariz afilado, olhos grandes e castanhos. Cabelos fartos, de um ruivo natural.

— O que foi? — ele pegou a bolacha.

— A policia encontrou outro feiticeiro morto. Dessa vez a vitima foi um membro da própria FBF. Como pode uma coisa dessas? — ela olhava a reportagem. — Que coisa horrível!

— Vai ver é apenas coincidência. — Daniel disse, sem muita convicção. Aquela era a quarta vitima e o criminoso- se fosse obra mesmo de uma mesma pessoa- só tinha matado feiticeiros.

— A policia mais uma vez descartou latrocínio. Estão achando que pode ser algum demente.— ela balançou a cabeça, irritada.— Caça a bruxos em pleno século XXI! Um absurdo!

— Se é!— ele se dirigiu à mesa onde escolheu uma rosa vermelha do grande arranjo que dominava a peça.— Mas me deixa correr. Olha, Helena, chego tarde hoje. Vou buscar a G.— avisou, já saindo.

— Dan, cuidado!— gritou ela da cozinha.— E estou falando daquela armadilha mortal!

A "armadilha mortal" era a moto de Daniel, uma 350. Helena tinha pavor de motos.

~~~

Regina, namorada de Daniel e um ano mais nova que ele, estava com aquela expressão fechada e séria à porta principal do shopping. Seus cabelos negros e longos estavam soltos, um tanto desarrumados, dando-lhe um ar meio felino, que combinava com os olhos verdes serenos, quase frios, e maquiados, mas os lábios já sem batom nenhum.

Desde a morte de seu pai, humano, dois anos antes, as coisas ficaram difíceis para Regina e a mãe, uma feiticeira. Elas moravam num pequeno apartamento com um gato preto, o gato Gizmo, assim batizado por Regina, fanática pelos gremlins dos filmes e da vida real. A FBF - Federação Brasileira de Feiticeiros- proibia a criação domesticas dos pequenos seres travessos por haverem em épocas passadas aterrorizado cidades.

Naquela tarde, Regina estivera no seu ultimo dia como vendedora temporária numa loja de roupas no shopping. As aulas na Academia Vórtice recomeçariam em breve e, como era semi-internato, ela não poderia continuar no trabalho.

— Presente pra mim?— Regina foi aproximando-se do namorado ainda sentado na moto e olhando a rosa sem mudar de expressão.— Você sabe que não gosto de flores.— ela disse arrancando e jogando as pétalas da flor fora.

Ele já não se surpreendia com seu mau humor, azedo. Mesmo se o sol brilhasse sempre, a cordialidade dela - se é que existia alguma- não saia da gaveta. Do fundo da gaveta. Era um mistério a ser elucidado Regina se manter nos bicos que conseguia. Havia gerente que até queria contratá-la, mas por causa da Academia ela sempre recusava.

— Eu sei, G.— ele suspirou olhando as pétalas da flor no chão.— Era pra sua mãe.

— Ah.— ela assentiu sem demonstrar o menor remorso pela sua atitude.— Eu digo que você deu um caule de uma rosa pra ela.

Daniel balançou a cabeça com desgosto.

— Eu quero pilotar.— Regina colocou a mão sobre a pintura vermelha metálica salpicada de dourado, as chamas desenhadas sobre o tanque de combustível.

Ele roçou com a ponta do dedo o piercing na sobrancelha esquerda dela.

— Como se diz?

Como o esperado ela foi curta e grossa:

Agora.

— Que gracinha.— ele arrastou-se para trás no banco, deixando-a tomar o lugar do piloto, vendo Regina colocar o capacete e ajustar a tira do queixo, antes de aumentar o tamanho da alça bolsa e a passar na diagonal pelo corpo.— Por que ainda namoro você, menina malcriada?

— Eu sou irresistível.— ela ligou o motor, baixou o visor e virou a cabeça.— Pronto?

Ela não esperou a resposta dele e então, saiu, disparando para a frente. Acelerou, atingindo a rua em alta velocidade ultrapassando um caminhão, carros e ônibus.

Regina amava motocicletas desde que era criança. O pai dela era mecânico e ela não tinha mais do que dez anos quando começou a ajudá-lo na loja e aprendeu tudo o que ele tinha para ensinar. Uma garota que gostava e conhecia de motos? Aquele tinha sido um sonho de Daniel concretizado.

Em certo trecho de uma rua de menor tráfego um sujeito todo em couro sobre uma moto Ducati 1098 fez um tchau e arrancou à frente deles.

— Se segura, Daniel!

Ele mal ouviu a palavras dela acima do barulho do tráfego e do vento e Regina acelerou até o limite da capacidade da máquina. Num instante emparelharam-se com a outra moto. Vendo a aproximação, o moço da Ducati fez outro movimento com a mão e distanciou-se novamente.

— Ele quer nos humilhar!— o vento arrastou as palavras de Daniel para longe.

Muitos teriam desistido. Ela foi em frente. Meteu-se entre alguns carros e tornou a emparelhar com a Ducati. O motoqueiro da outra moto então fez algo inesperado: soltou a mão e com gesto lançou uma rajada gélida, congelando a pista que tocava numa névoa de flocos de neve.

Um feiticeiro.

Regina fez uma sequência de curvas para se desviar do gelo e colocou-se pouco atrás do outro motoqueiro. Cerrando os dentes, ela grunhiu e ergueu a mão, seu dedo começou a crepitar um relâmpago, apontando para a Ducati.

— Não faz isso, Regina!— gritou Daniel.

— Ele tentou nos matar!

— É! E vamos ser presos por usar magia inadequadamente!

A Ducati freou até estar completamente parada num posto de gasolina. Regina seguiu até lá. Baixando o pé de apoio da moto, ela desligou a 350.

— Você estava tentando nos matar?— Daniel saltou do banco, removendo o capacete.

O outro motoqueiro levantou a perna e desceu de modo bastante elegante, com facilidade, antes de tirar o capacete, seus cabelos despenteados, passar as mãos por eles e colocar o capacete no assento. A garota tinha a pele tão escura quanto a de Daniel e uma cabeleira de caracóis volumosos.

— Claudia?!— Daniel exclamou ao reconhecer a meia irmã caçula e que morava com a mãe deles noutro bairro.— Você é doida mesmo! Poderia ter nos matado!

— Ainda estão vivos, não é?— os lábios de Claudia tinham os cantos curvados para baixo.

— Eu vou bater na sua irmã.— Regina desmontou da moto.

E é o que teria feito se o celular de Daniel não houvesse tocado, assustando os três. O toque do celular era o ronco como o motor de uma moto Harley Davidson.

— Droga.— ele pegou-o, vendo o número e o nome e atendeu.— Oi, pai.

Logo um rastro brilhante saiu do celular riscando o ar de um lado ao outro, desenhando a forma do rosto de um homem. Seu pai.

— Oi, Dan.— ele ficou mudo um momento. Por fim, disse:— Seu avô... Seu avô Zacarias morreu.

As crônicas Darwich. Chave de CobreOnde histórias criam vida. Descubra agora