20 - Alta Costura

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Eu estava cansada, cheia de dor e com cortes em cada parte do meu corpo, como se não bastasse a surra que eu havia levado daquele monstro antes. Como o meu sangue já tinha esfriado, após toda a loucura que havia acontecido há poucas horas, cada milímetro do meu corpo doía, me mexer doía, andar doía, sorrir doía. E para piorar, toda a energia que eu havia sugado do monstro foi usada para correr sem parar até chegar nesta loja que, com toda certeza, é o lugar mais seguro que existe num raio de dez quilômetros da casa da Mel.

- Como você está meu bem?

Cassandra sempre foi uma boa amiga e uma excelente cliente. Na verdade ela foi a primeira cliente que me contratou. Quem vê a aparência simples e o jeito gentil de Cassandra, não sabe que ela é uma das amigas que a Sara fez no exército quando lutava contra os carniçais. Cassandra é, provavelmente, a vampira mais antiga que eu conheço. Ela está quase fazendo duzentos anos e sua idade está começando a aparecer em sua pele como marcas da alergia ao sol. Eu pego em sua mão e olho nos olhos mais gentis que eu já vi na minha vida

- Eu que deveria te perguntar, Cassie. Olhe como estão seus braços. Você saiu no sol de novo, não foi?

- Você deveria olhar para esta sua cara, Al. Se continuar se metendo em tantos problemas como você faz, vai acabar com a beleza desse rostinho fofo.

- Qualé, Cassie. Nem se jogarem ácido nessa carinha eu perco a minha beleza, sabe porquê? Porque minha beleza é o meu charme.

Eu disse beijando as mãos cheias de manchas vermelhas de Cassandra.

- Deixe de gracinhas senhorita Alice. Se a Serena te pega…

Eu acabo rindo muito alto. Por mais que eu tenha juntado essas duas, Serena nutre um ódio genuíno por mim desde que ela descobriu qual foi o pagamento que Cassandra me deu. Desde então, momentos a sós com Cassandra ficaram raros e é a própria Serena que me paga.

- Falando no demônio, onde essa pirralha se meteu?

- Você conhece a Serena… provavelmente está obrigando a filha da Sara a protagonizar um dia de princesa.

- Falando nisso, você realmente conseguiu transformar a Serena? Eu achei que ela morreria se tentasse.

- Os livros que você encontrou pra mim na última missão foram muito úteis para controlar a transformação e evitar a morte dela.

- Você não se arrepende, Cassie? Você perdeu muita coisa pra conseguir a Serena perto de você.

- Eu nunca me arrependo, sabe? Posso ter perdido uns anos da minha vida com aquele pagamento que sua mãe estipulou para o rastreamento.

- Você sempre soube que nossos preços eram absurdos. Ainda mais por conta das experiências que a Dra. Faz.

- Vamos parar de falar de mim, menina. Você precisa de um banho e tem que vestir essas roupas. Vá lá para os fundos da loja e tome um bom banho. Tem um kit de primeiros socorros no armário debaixo da pia.

- Você pode me arrumar uma agulha, um carretel de linha e álcool também? Tenho quase certeza que alguns desses cortes precisarão de pontos.

- Quer que eu faça pra você?

- Nem precisa. Eu consigo me virar com pouco. Se a linha for de nylon fino, já é uma grande ajuda.

- Devo ter alguma linha desse tipo em algum lugar na loja. Vá tomar seu banho enquanto eu procuro.

Eu segui para o fundo da loja, onde fica a casa que Cassandra e Serena dividiam. Eu conhecia bem esse lugar pois já vim inúmeras vezes aqui para entregar documentos que eu encontrava durante minhas viagens e missões. Era uma casa com dois quartos, cozinha, área de serviço e 2 banheiros. Um ficava no quarto das duas e a entrada do outro ficava na sala de estar. Segui para o banheiro de visitas e tirei minhas roupas, que estavam ensaguentadas.

Reparei que haviam vários cacos de vidro presos nas feridas. Alguns grandes, outros nem tanto. Eu fui tirando um por um, devagar e os joguei no lixo. Foram ao todo 23 cacos que eu tirei, contudo apenas 4 que eram enormes e tampavam buracos que eu teria que costurar ou provavelmente morreria sangrando.

Eu tomei o banho mais rápido que eu consegui. Eu não tinha tempo a perder pois precisava fechar todas aquelas feridas. 3 delas eu consegui estancar o sangue com gaze e esparadrapo, porém a última estava tão profunda e comprida que só com sutura não fecharia.

- Alice querida, você vai precisar mesmo da agulha e da linha?

Eu estava fraca e perdendo sangue. Minha visão estava turva. Eu não conseguiria fazer os pontos.

- Acho que vou precisar de você também, Cassie.

Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria. Me sentei na tampa fechada do vaso sanitário enquanto Cassandra entrava. Provavelmente a cena era deplorável, pois eu estava nua e com um corte imenso no meu seio esquerdo. O corte sangrava sem parar e eu sentia meu rosto ficar muito gelado aos poucos.

- Sua idiota, você não deveria tirar o caco antes de ter tudo que precisa para fechar a ferida.

- Eu… precisava… limpar…

Eu estava me forçando ao máximo para ficar acordada, mas eu estava sentindo muito sono enquanto eu sentia a dor. Cassandra estava me costurando. Sem pena, sem anestesia, ela me costurava como se minha pele fosse um vestido com a costura solta. Eu sentia cada agulhada que ela me dava. Sentia a linha áspera passando pelo buraco feito pela agulha. A dor era excruciante, porém eu não me dava ao luxo de gritar. Não queria preocupar a Mel ou a Serena.

- Já estou terminando meu bem… mas você perdeu muito sangue. Você tem que se alimentar. Depois que eu terminar aqui, tente se vestir. Eu vou chamar a serena. Eu me ofereceria mas, não sei se eu sobreviveria a você.

Ela deu uma risadinha fofa enquanto continuava a me costurar. Já havia chegado a um ponto em que eu me acostumei com a dor que ela infligia. Eu mal ouvi quando ela disse que havia acabado. Tive uma dificuldade imensa para abrir os olhos.

Levantei lentamente a minha mão e peguei as roupas que eu havia escolhido que estavam penduradas no porta-toalhas em frente ao vaso. Me vestir foi uma das tarefas mais árduas que eu tinha feito nos últimos meses. Quase desmaiei algumas vezes, mas quando Serena chegou eu já estava com a calça e estava abotoando a blusa. 

- Nossa tampinha, você tá um lixo.

- Cala… boca.. Serena…

- Nossa, me chamou de Serena… a coisa está realmente séria.

Serena se aproximou e me ajudou a abotoar a blusa. Ela podia ser uma megera as vezes, mas, no fundo, ela é uma boa menina.

- Só tenta não me deixar muito fraca. Da última vez você me deixou uma semana de cama.

Eu segurei a mão dela e a puxei para mais perto. Eu conseguia sentir sua força vital passando lentamente pra mim.

- Da última vez você não era vampira.

Eu a puxei para mais perto e a segurei com a outra mão.

ALMA VAZIAOnde histórias criam vida. Descubra agora