24 - O Beijo

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Depois de uma sessão de costura intensa e de cuidados, a doutora finalmente se cansou de me futucar e cutucar e foi se dedicar a outros afazeres. Ela guardou o cadáver que estava na maca ao lado, em sua enorme geladeira de corpos e foi pra dentro da casa fazer Deus sabe lá o que.
Depois desta noite intensa, cheia de correria e uma quase morte da minha parte, eu finalmente podia pensar mais claramente e sem pressão alguma, ou quase isso, afinal, tem uma enorme criatura branca e peluda que está atrás de mim e, aparentemente, só vai descansar quando me matar. É questão de tempo pra que ele encontre esse lugar, afinal, ele me atacou não muito longe daqui e teve a pachorra de ir na casa da Mel para me pegar. Eu preciso pensar em um jeito de me livrar desse encosto canino de uma vez por todas.
Meus pensamentos começaram a divagar, provavelmente por causa da anestesia que eu tinha tomado e  acabei pensando na Mel. como será que ela está? Eu achei que ela ia gritar e espernear quando ouvisse a história sobre a Sara, mas ela reagiu bem até demais, foi totalmente racional e ponderada.
Enquanto eu estava divagando, a doutora entrou com uma Mel totalmente transtornada. Sem brincadeira, parecia que ela tinha visto um demônio. Ela estava com os olhos arregalados, lágrimas escorriam de seus olhos e ela tremia muito. A doutora a colocou na maca que estava ao meu lado e começou a falar algo em voz baixa para a Mel. Depois de um tempo tentando acalmá-la, a doutora foi em um armário não muito longe, pegou um frasco e uma bolsa de sangue, colocou dois comprimidos na mão da Mel e falou:
- Toma isso meu bem, vai te fazer se sentir melhor.
A mel engoliu os comprimidos e bebeu o sangue com as mãos trêmulas. A doutora a ajudou a se deitar na maca, virou-se para mim e disse em um tom baixo.
- Acho que ela não está muito bem, pobrezinha. Toda essa história está afetando a cabecinha dessa jovem.
- O que aconteceu?
- Eu não sei… eu estava indo ver onde ela estava quando notei que a porta da frente estava aberta. Quando eu fui pra fechar, ela estava agachada no chão, se balançando e chorando.
Eu sabia que talvez a Mel pudesse ter uma reação exagerada, mas isso é demais. Como uma mulher que se diz tão racional me tem um ataque? A doutora olhava para ela de uma forma preocupada e a havia deitado em posição fetal, virada de costas para mim. Se ela teve esse tipo de reação descobrindo o básico, o que eu deveria esperar dela quando ela ficar sabendo de tudo? Talvez seja melhor que a Mel não descubra mais nada… ou talvez seja melhor ela saber de tudo? Sinceramente, eu não sei. O que eu sei é que neste exato momento, ela precisa de cuidados e definitivamente, eu não sou a pessoa que pode proporcionar isso.
Eu tentei sentar na maca. Eu sentia o incômodo no peito, mas me sentia bem. Os analgésicos que a doutora me deu estavam surtindo efeito, mas eu estava começando a sentir fome.
- Doutora, você tem mais daquele troço que me fez tomar no outro dia? Acho que preciso de um pouco.
A doutora se virou para mim e disse:
- Se você está com fome, terá que se alimentar sozinha. Eu não tenho nenhum inibidor pronto no momento. Era pra eu te dar outro só daqui a umas semanas.
- Você só pode tá de brincadeira com a minha cara. Quer que eu saia na rua com um monstro me perseguindo e ainda por cima toda fodida desse jeito?
- Que outra opção você tem Alice? Se tentar se alimentar de mim… bem… nem pensar nisso. E a pobre da Mel…
Mel ainda estava deitada na maca em posição fetal. Se eu tentasse sugar qualquer coisa vinda dessa garota, corria o risco das minhas feridas abrirem ainda mais.
- Já entendi. Eu preciso de uma pessoa saudável e mentalmente sã.
- Exatamente. E você não vai encontrar isso aqui dentro.
Eu não consegui conter uma risada. Eu estava realmente fodida. Eu precisava comer e não sabia exatamente como eu conseguiria… ou eu sabia? De repente me bateu uma ideia muito louca e pulei da maca. Senti uma pontada na costela mas isso não desviou minha determinação.
Menina, tome cuidado.
- Não se preocupe dra. Eu sei bem aonde vou comer.
A doutora ficou com um olhar de dúvida até entender o que eu pretendia fazer. Ela deu uma risada e disse:
- Estou com pena do pobre Rato.
Não seria a primeira vez que o rato serviria como um revigorante lanchinho para mim, na verdade, quando eu não tenho nenhum trabalho ou estou em estado grave, é ele quem me ajuda, já que carniçais tem uma facilidade de regeneração muito alta, acho que é mais alta até que a de um vampiro.
- haha… pode ter pena... eu estou com muita fome.
Eu estava muito feliz com a minha ideia, eu não precisaria ir muito longe e nem me alimentar de uma pobre alma inocente que estivesse passando. Isso me dava mais segurança e tranquilidade, eu não gosto de me alimentar de pessoas inocentes. As vezes é necessário? Sim. Mas é… desconfortável.
Eu fui andando tranquilamente para a porta da frente e estava até pensando em pegar o carro da doutora emprestado quando eu senti alguém puxando meu braço. Quando me virei, as coisas aconteceram muito rápido. A Mel, vinda de Deus sabe onde, me agarrou e me deu um beijo.
Em circunstâncias normais, eu a afastaria e perguntaria se ela enlouqueceu, mas a fome estava tomando conta de mim então acabei correspondendo o beijo e a puxando para mais perto. Eu sentia as emoções contidas na alma dela: tristeza, insegurança e… amor? Era algo muito estranho, eu podia sentir as ondas de energia vindo da alma dela. Podia sentir vindo de sua boca e principalmente, as dores que eu estava sentindo estavam gradualmente sumindo. A boca da Mel era tão macia e quente que me dava vontade de beijá-la para sempre. A quanto tempo estávamos nisso?
Quando ela parou de me beijar, vi uma Mel de olhos inchados e pálida. Eu não sabia dizer se era por eu ter me alimentado demais ou porque ela já estava assim. Vi em seus olhos um pedido, quase uma súplica. Ela pegou minha mão e me guiou até o segundo andar da casa. Eu não sabia se o que me movia era o desejo ou minha fome, mas eu simplesmente não conseguia me obrigar a dizer não para ela.
Eu já não conseguia me conter direito, estava apenas seguindo a Mel, desejando sugar mais daquela alma, pois o pouco que ela havia me proporcionado estava tão delicioso. Eu estava concentrada demais nela porém algo me chamou a atenção quando subimos ao segundo andar da casa da doutora. A Mel estava me levando para um quarto com uma porta de madeira escura que logo eu reconheci. Era o quarto daquele dia. O quarto que eu havia ajudado a doutora a colocar a Mel quando ela estava quase morta.
Isso me fez recobrar um pouco de bom senso. Eu parei e soltei a mão dela, que se virou com um olhar de dúvida e tentou me beijar novamente. Eu a parei e disse:
- Não podemos fazer isso.
- Você quer, eu quero… por que não podemos?
Ela tentou outro beijo, dessa vez me puxando para si. Eu me soltei e disparei:
- Primeiro: eu to toda fudida de fugir e correr, segundo: você tá com uma cara de louca e psicótica e terceiro: não é assim que vamos resolver as coisas entre nós. Isso só deixaria as coisas ainda mais estranhas, Mel. Temos muita coisa pra conversar, coisas que eu tenho evitado há dez longos anos e… eu acho que tudo isso… bem… o que tá se passando na sua cabeça? Me puxar assim do nada…
Eu olhava fixamente para Mel, que não conseguia me olhar nos olhos. Ela estava apenas fitando o chão.
- Você é muito melhor que isso, Melanie. Quando foi que aquela mulher forte que se tornou policial deu lugar pra essa versão desesperada? Isso não é você… você tava tão bem lá na Cassandra e agora você tá… bom… eu não tenho tempo pra lidar com isso, Mel.
Eu me virei e estava pronta para descer as escadas quando ela me segurou e me virou.
- Eu nunca fui uma mulher forte, Alice. Me obrigaram a ser forte. Você acha que foi fácil? Você me deixou sozinha lidando com tudo. Me fez acreditar que eu não era boa o suficiente pra você. Me fez acreditar que não valia a pena ficar do meu lado. E agora… você quer ir de novo. Toda vez que te vejo sair de perto de mim, eu acredito que vou passar mais dez anos sem saber de você. E eu não quero isso… eu fiquei… meu Deus… eu estou desesperada… eu já perdi minha mãe. Não sei se eu posso perder você… eu achava que já tinha te esquecido, te superado. Mas não, nunca parei de pensar em você. Que inferno, Alice. Eu odeio você por ter ido embora. Te odeio por ter mentido pra mim. Eu odeio você e minha mãe por tudo que me esconderam. Odeio esse lugar… mas nada disso importa… porque se você for embora e não voltar… estarei sozinha e vazia de novo.
Eu não pude conter o sorriso. Ela estava toda preocupada de que eu fosse embora. Que coisa mais… fofa? Não sei. Meus sentimentos estavam confusos com essa confissão de amor e ódio que ela havia feito. Eu soltei um louco suspiro e disse:
- Eu não sei exatamente como eu tô me sentindo com tudo isso que você tá falando, mas eu posso te dizer uma coisa: eu não estou indo embora. Eu só preciso me alimentar e dar um jeito naquele monstro. Eu vou voltar. Não se preocupe com isso. E, depois, quando a gente tiver um tempo, vamos sentar com um café ou uma vodka e vamos falar sobre todo esse ódio que você está sentindo.
Eu peguei a mão da Mel que estava no meu ombro. Ela emanava estresse, medo e amor. Eu segurei aquela mão gelada e trêmula e beijei seu dorso.
- Fique aqui o tempo que precisar, Mel. A casa não é minha, mas a doutora com certeza te tratará bem. Depois você faz o que achar melhor. Se quiser sumir, não te culpo, mas saiba que eu vou dar um jeito de te achar.
Então eu finalmente me afastei dela e desci as escadas. A cada degrau que eu desci, senti o peso das palavras da Mel. Toda a dor. Todo o sofrimento. Como alguém que eu machuquei tanto ainda tinha espaço para sentir amor por mim? Eu não sei.
Tudo que eu pensava era que eu precisava logo encontrar o assassino de Sara, mas isso ficaria para depois, já que aquele monstro maldito sabia onde a Mel morava, ele poderia fazer algo com ela e eu não vou deixar nada acontecer a ela. Eu ia apenas ficar fugindo daquela criatura, mas agora ele mexeu com algo que não deveria, então terá que sofrer com todo meu ódio e fúria.
Quando eu cheguei na porta, vi a Mel no começo das escadas me observando. Eu dei meu melhor sorriso e acenei para ela. Meus músculos estavam doendo menos e a costura estava levemente cicatrizada graças ao beijo que ela havia me dado.
- Não se preocupe, Melzinha, eu vou voltar. E inteira.
Pelo menos era isso que eu esperava.

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⏰ Última atualização: Mar 23, 2021 ⏰

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