09 - Sangue

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Eu vasculhei todo o apartamento, olhei cada canto, abri e fechei armários e realmente era verdade:  Alice foi embora e não deixou um mísero recado para mim. Eu estava puta, triste e, principalmente, frustrada. Como ela ousa fazer isso de novo? Como ela ousa me abandonar mais uma vez? 

Eu caí em seu truque de “precisar de ajuda” só para ela poder passar a noite aqui. Eu achei que ela sabia de algo sobre esse erro nos arquivos de nossa mãe, mas pelo jeito era só um chute certeiro que ela deu para me manter ocupada enquanto ia embora.

Peguei uma garrafa de sangue puro que ganhei de um colega no amigo oculto da polícia. Eu estava guardando essa garrafa para alguma ocasião especial ou se eu fizesse algum amigo vampiro, o que nunca aconteceu. Peguei uma taça do conjunto que comprei para ornamentar minha cozinha. Queria dar a ela um ar de cozinha chique. Tenho alguns vinhos, vodkas para o dia que eu convidasse algum dos meus amigos aqui para casa, contudo nunca convidei ninguém para minha casa nova. Acho que tenho dificuldade em fazer amigos.

Beber sangue puro não é recomendado pois é o mais próximo de ficar bêbado que um vampiro pode chegar. O sangue puro nos deixa com uma sensação de torpor e leveza muito parecida com o que acontece com um humano que ingere álcool. Beber direto de um humano faz com que a “bebedeira” fiquei ainda mais fiel, principalmente se o humano tiver ingerido álcool, aí ficamos completamente absortos pela sensação de embriagues que o sangue nos proporciona, contudo, essa embriagues só perdura o tempo de nos alimentar, o que varia de vampiro para vampiro. Pode demorar de cinco minutos a três horas. Tudo depende de como o metabolismo absorve o sangue.

Eu queria gritar, chorar e socar a cara daquela vagabunda, mas, Alice não está aqui para que eu desconte minha raiva. Ela deve me achar muito idiota para simplesmente aparecer na minha casa, bagunçar minha vida, meus sentimentos e simplesmente desaparecer como se não fosse nada demais e sem deixar um bilhete. De novo.

Enchi a taça até o limite e tomei de uma vez. Não tem ninguém aqui comigo mesmo, não preciso fingir que sou educada.

Eu sou uma burra também, né? Como eu pensei que seria diferente? Que ela poderia estar arrependida e por isso ter vindo me ver. Que ela ia me pedir desculpas e nós poderíamos ficar bem de novo. Que tudo poderia voltar a ser como antes da morte da mamãe, como antes do acidente. Aquele maldito acidente. Se eu fosse mais forte naquela época, nós ainda estaríamos juntas quando a mamãe morreu, e ela não teria coragem de me deixar, não é mesmo?

Enchi outra taça e bebi inteira novamente. Acho que nunca tinha tomado sangue puro antes, até porque, é muito caro. Apenas celebridades e aristocratas tem dinheiro para bancar uma garrafa de sangue dessas. Quem havia me dado essa garrafa mesmo? Eu não me lembro. Não importa agora, o importante é que ela é uma delícia, e eu quero sentir o torpor. Eu não quero ficar me sentindo uma miserável agora.

Parei para pensar no que aconteceu ontem. Alice sugou minha energia, ela se descontrolou e começou a chorar me pedindo perdão. Parece que ela ainda se culpa por aquele acidente maldito. Eu sei que o acidente foi o que nos afastou, mas a morte da mamãe fez a Alice ir embora de vez. Me pergunto o que ela achou que aconteceria? Que sem ela por perto eu ficaria mais feliz? Que sem vê-la eu não carregaria mais o peso de tudo? Eu fiquei sozinha, tive que carregar todo o peso sozinha. O peso da morte da mamãe. O peso de não ter a pessoa que eu amo ao meu lado. O peso de ter virado vampira por causa da Alice. O peso da minha sede.

Eu estava prestes a encher a terceira taça quando pensei: por que eu estou usando taça mesmo? Eu posso beber como um pirata. Eu vivo sozinha, não tenho nem um animal de estimação para cuidar. Eu sou patética. Uma vampira solitária e patética.

Eu nunca culpei a Alice. Foi culpa minha. Eu sabia dos riscos de me envolver com ela. Alice tinha me avisado de todos os riscos de me apaixonar, todos os empecilhos de sua doença, a síndrome da alma vazia, todos os riscos de me matar e eu mesmo assim caí de cabeça e, o que eu ganhei? Um desejo maciço por sangue e dez anos de solidão. Se a Sara não tivesse me transformado, eu com toda certeza do mundo, teria morrido.

ALMA VAZIAOnde histórias criam vida. Descubra agora