10 - Traumas

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Assim que entrei no quarto de hospedes da Mel, tranquei a porta, não consegui mais me conter e desatei a chorar. Nunca imaginei na minha vida que a Mel seria capaz de tentar me atacar daquela forma.
Eu me recostei na porta e continuei chorando baixo, pois não queria que a Mel ouvisse. Sara sempre me falou que lágrimas demostram fraqueza e que não podemos deixar aqueles que querem nos subjugar nos vejam chorando.
Sempre que penso na Sara, sinto um misto de emoções, afinal, ela foi minha salvadora quando eu acreditei que não existia mais nenhum motivo para continuar viva. Foi ela que me encontrou jogada no canto de um quarto após eu ter matado o homem que me torturou durante três meses. Ela me livrou da escravidão que minha mãe me impôs após me vender a um vampiro. Eu fui torturada, sugada e abusada. Minha vida era um grande tormento e um dia eu simplesmente não aguentei.
Eu estava magra, faminta e sentia que quase todo meu sangue tinha sido sugado. Foi naquele dia, num momento de desespero, que minha doença se manifestou. Assim que o homem entrou no quarto e foi se aproximando, eu senti minha fome aumentando cada vez mais e quanto mais perto ele chegava, mais fome eu sentia.
Quando ele foi me morder, senti um impulso que me controlou: eu agarrei seu rosto e senti algo passando dele para mim. No início ele tentou lutar, me tirar de cima, mas, quanto mais ele tentava me tirar de cima, mais força eu ganhava, até que, eu senti a força que eu puxava dele acabar. Quando o soltei, ele caiu no chão como um boneco, sem vida.
Depois daquele dia eu jurei que ninguém nunca mais ia provar do meu sangue. Não importa o quanto eu ame a pessoa, eu não consigo, simplesmente, deixar alguém tentar tomar um pingo que seja do sangue que corre em minhas veias.
Eu não sabia como fizera aquilo, mas sabia que quando os capangas do vampiro entrassem, eles me matariam sem pensar duas vezes. Eu já estava farta de tudo o que havia acontecido até aquele momento e cogitei, até, tirar minha vida, por um segundo, mas, esse pensamento logo se dissipou, pois comecei a ouvir tiros. Eu não sabia o que fazer, eu acreditava que logo seria morta.
Decidi que se eu seria morta por ter matado aquele imbecil, eu levaria mais alguém comigo, por isso comecei a procurar pelo quarto qualquer coisa com a qual eu pudesse me defender. Quanto mais eu procurava, mais ouvia os barulhos de tiro ficando mais perto. Logo que eu encontrei um abridor de cartas, a porta do quarto foi aberta e, ao invés de entrar um dos capangas do vampiro que eu havia matado, entrou uma mulher negra, vestida totalmente de preto, portando uma arma. Era a Sara. Eu apontei o abridor de cartas para ela, Sara olhou para cama e viu o corpo inerte do vampiro e falou:
- Você fez isso?
Eu estava atônita e apenas balancei a cabeça positivamente.
- Você é uma garotinha corajosa. Conseguiu matar ele com isso?
Sara apontou para o abridor de cartas
Eu apenas neguei com a cabeça.
Ela se abaixou a altura dos meus olhos e perguntou:
- como você matou ele?
- Com a minha fome.
Ela deu um sorriso, me estendeu uma mão e disse:
- Você deve ser uma garotinha especial, não é mesmo? Vem comigo, não vou deixar mais ninguém chegar perto de você.
Ela me tirou daquele casarão enorme, me levou até o portão, por onde nós passamos sempre havia um corpo estirado no chão. Depois de sairmos do casarão, andamos um pouco, por uma estrada, até chegarmos a um carro preto. Eu tinha apenas 12 anos na época, não entendia nada de carros ou de vampiros, mas eu sabia que essa mulher havia salvado a minha vida.
Sara me levou direto para a doutora Rosa, que me espetou, examinou e cuidou de todos meus ferimentos. Eu fiquei uns quatro dias sendo examinada incansavelmente pela doutora Rosa, acho que nunca na minha vida eu tinha sido tão bem cuidada.
Mesmo em um lugar seguro, com uma cama quente, eu tinha muitos pesadelos e constantemente sentia aquela fome que me fez matar o vampiro. Eu conversei sobre isso com a Sara e doutora Rosa, que fez ainda mais testes comigo.
Foi quando descobriram a minha doença e da minha necessidade de sugar almas. A doutora e a Sara providenciaram todo tipo de equipamento para conseguir um soro, um comprimido ou qualquer coisa que me impedisse de matar pessoas. Eu fui espetada e analisada várias vezes, porém eu nunca tinha me sentido tão segura. Elas queriam me ajudar!
Sara não parou de trabalhar, então, vinha me ver sempre que podia. A doutora me dava aulas particulares de português, matemática e biologia, e Sara me dava aulas de defesa pessoal, tiro e estratégia. Sara sempre dava um jeito de trazer algum cara mau para que eu sugasse sua energia. Eu estava muito feliz.
Quando completei quinze anos, a doutora tinha conseguido criar um tipo de soro que inibia minha vontade de me alimentar, não deixando que eu matasse ninguém, então, eu poderia viver uma vida de adolescente normal.
Sara deu um jeito de me adotar legalmente, me levou para casa e me apresentou a sua filha. Ela me pediu para nunca contar a Mel sobre como ela me conheceu, pois, a Mel não sabia de algumas coisas que a Sara fazia, principalmente essa parte de matar caras maus e salvar menininhas indefesas. Era um segredo nosso e eu nunca contei a Mel.
Eu comecei a frequentar a escola e, graças as aulas da doutora Rosa, consegui me matricular na mesma série da Mel, mesmo que ela fosse dois anos mais velha que eu e eu ainda ter a aparência de uma garota de doze anos.
Não sei se era o meu cheiro ou meu carisma, mas eu rapidamente me tornei a garota mais popular da sala, diferente da Mel que vivia para os estudos. Os caras queriam sair comigo, o que era muito bom, pois eu poderia sugar um pouco da energia deles.
Duas vezes por semana eu tinha que ir à casa da doutora Rosa para receber as lições de defesa pessoal e tiro da Sara. Ela não podia me dar essas aulas em casa, pois não queria que a filha descobrisse. No começo eu não entendi o motivo de Sara não querer que a filha soubesse que ela era uma policial dedicada à noite e uma assassina de dia, até passar um tempo de qualidade com a Mel.
Mel sempre endeusou a Sara. O sonho da Mel era se tornar uma policial íntegra e forte como a Sara. Por isso que ela não queria que a filha descobrisse seu segredo, isso destruiria os sonhos da Mel e quanto mais eu via aquela garota tão inocente e dedicada se esforçando diariamente, mais eu queria protegê-la de qualquer coisa que pudesse entrar em seu caminho.
Quando dei por mim, já estava apaixonada pela Mel e comecei a provocá-la um pouco. Usava as roupas dela, só para ela vir brigar comigo, convidava ela para sair, mesmo que recusasse e as vezes me alimentava de sua energia a abraçando pelas costas.
Ela ficava muito brava no começo, mas, aos poucos, ela começou a demonstrar afeição por mim. Ela começou a me perguntar do meu passado, como era no lar adotivo e como eu havia conhecido a mãe dela. Eu menti sobre tudo.
Começamos a sair escondidas da Sara. Eu tinha certeza que ela não aprovaria o namoro de suas duas filhas e no começo, nossa relação estava indo bem, até eu começar a ter uma fome constante. Por mais que eu me alimentasse pouco da Mel, não era mais o suficiente. Eu precisava mais e mais de sua energia e, isso foi deixando ela muito fraca.
Sara logo percebeu que a filha estava diferente e reconheceu os sintomas que a Mel apresentava, afinal, quando ela não conseguia algum bandido para eu me alimentar, ela se oferecia para que eu sugasse sua energia.
Sara me levou para a casa da doutora Rosa e me confrontou. Perguntando o que estava acontecendo entre eu e a Mel. Não vi escolha a não ser contar tudo para Sara. Ela ficou uma fera, disse que eu não deveria me alimentar apenas da Mel e principalmente, que eu não deveria namorar a Mel. Ela tinha um futuro pela frente e uma namorada só atrapalharia, ainda mais uma namorada que poderia matá-la. Aquelas palavras doeram tanto dentro de mim. Não esperava que a mulher que sempre fora tão gentil comigo, se transformaria em uma fera disposta a acabar com meu relacionamento.
Sara me trocou de horário na escola e eu comecei a ter aulas diárias na casa da doutora Rosa. Ela me tirou do quarto da Mel e me alojou no quarto que antes era dela. Sara começou a dormir na sala o que impedia que eu e Mel nos víssemos de madrugada.
A Mel não conseguia entender o que estava acontecendo, ela não podia acreditar que a mãe a estava impedindo de me ver sem dar qualquer explicação. Mel me mandava mensagens, dizendo que estava com saudades e queria muito me ver, contudo, eu estava cada vez mais ocupada com minhas atividades de luta e tiro. Sara havia decidido que quando eu completasse dezoito anos, eu seria ajudante dela nos assassinatos. Mesmo com todos os problemas que ela estava causando ao meu relacionamento, me sentia honrada pela posição. E, eu tinha decidido que queria proteger a Mel de qualquer mal, incluindo eu.
Um dia, Sara não pode dormir em casa, parecia que ela teria que dobrar no trabalho. Mel não perdeu essa oportunidade e veio até meu quarto. Ela me beijou, me abraçou e disse que estava com saudades. Eu também estava com saudades, mas era perigoso demais ela ficar perto de mim.
- Mel, você precisa sair daqui.
- Não esquenta, mamãe não vem pra casa hoje.
- Mel, é sério. Volta pro seu quarto e me deixa em paz.
- Não vou pro meu quarto até você me contar o que está acontecendo.
Eu simplesmente contei tudo sobre a minha doença. Não mencionei Sara ou como ela me salvou, mas contei tudo que eu poderia fazer com ela caso ela ficasse muito tempo comigo.
Mel me olhou de uma forma tão doce que quase me fez derreter. Ela pegou minhas mãos e falou:
- Eu não me importo com o que pode acontecer Alice, eu quero ficar com você.
Eu não me segurei e comecei a beijá-la. Nossos beijos foram ficando intensos e eu ia puxando-a mais para perto. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo.
Conforme nossos corpos se mexiam inconscientemente eu ia sugando sua energia. Eu queria ela, ela me queria e isso parecia inevitável. Tudo estava acontecendo muito rápido e eu sentia a energia dela entrando por todo meu corpo.
Tudo foi muito intenso e maravilhoso. Eu nunca tinha tido uma conexão tão forte com alguém. Ela estava deitada na cama de olhos fechados, parecia adormecida, porém eu percebi que algo estava errado, ela estava, aos poucos, ficando gelada.
Eu havia sugado energia demais dela, ela estava morrendo. Eu liguei para a doutora Rosa, que não demorou muito para chegar. Eu carreguei a Mel até o carro, eu sentia sua respiração tão fraca. O desespero era grande. O que eu havia feito?
A doutora ligou para Sara, que chegou o mais rápido que pode. A doutora manteve a Mel estabilizada até a chegada de Sara, que, ao chegar, foi direto para o local onde Mel estava deitada. Sara e a doutora conversaram, o que, para mim, pareceu uma eternidade.
A doutora saiu e foi conversar comigo. Contei a ela tudo o que havia ocorrido e ela me falou que a vida da Mel estava por um fio e que ela talvez tivesse uma chance com a transformação para vampiro e era o que a Sara estava fazendo naquele momento.
Apenas vampiros sabem como funciona a transformação, e eles não conseguem dizer para ninguém. É um segredo da raça.
Até os dias de hoje eu me culpo pela Mel ter sido transformada em uma vampira. Eu sabia que ela queria fazer isso um dia, mas, ela poderia ter vivido mais como humana e até ter tido um filho se quisesse.
Depois que a Mel foi transformada, nunca mais ousei chegar perto dela. Eu sei que se eu me descontrolar, posso matá-la. Mesmo que hoje eu saiba controlar muito bem minha sede por energia, não vou me arriscar a matá-la.
Todas essas lembranças fazem com que eu me sinta frágil e sozinha. Eu deixei a Mel após a morte da Sara porque eu queria continuar a matar bandidos como ela fazia e acima de tudo, eu queria dar a Mel o prazer de saber que o homem que havia matado a mãe dela morreu implorando por sua vida enquanto eu sugava sua energia.
Tudo que eu fiz durante todos estes dez anos foi matar bandidos e seguir pelo mundo procurando pistas do assassino da Sara. Eu não vou descansar até fazer esse homem pagar por toda dor e sofrimento que ele fez a Mel sentir.

ALMA VAZIAOnde histórias criam vida. Descubra agora