14 - Consulta

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- Como você se sentiu após tomar o soro?
A dra. Rosa estava sentada em uma banquetinha rosa me olhando fixamente. Eu estava deitada em uma das mesas que ela usava para lavar os corpos. Eu deveria estar incomodada, mas isso acontece com tanta frequência que, para mim, é super normal.
- Me senti bem. Não me deu fome por um dia e meio.
Eu estava deitada olhando pro teto. Tinha uma espécie de chuveiro pendurado. Acho que a doutora usa para lavar os corpos… isso é tão estranho.
- Só isso? Da última vez foram 3 dias.
Eu me virei pra ver a doutora, ela estava anotando algo em um caderninho cor-de-rosa. Ela usa uma caneta rosa com um pompom felpudo na ponta. A doutora é a definição de velha excêntrica.
- Da última vez eu fiquei cheia de bolhas nos pés, elas tinham pus.
Cada vez que ela me dá um desses soros pra beber acontece alguma coisa muito esquisita comigo. Eu já fiquei brilhando, já arrotei a cada 30 segundos durante 3 dias e a pior de todas: cresceram pelos grandes, pretos e compridos na minha bunda. Aquilo foi a coisa mais horrorosa que já me aconteceu. Mais até que as bolhas de pus.
- Detalhes, detalhes... me fale mais do que você sentiu com essa nova fórmula.
- Eu fiquei um pouco enjoada no começo…
Muito enjoada na verdade. O gosto daquela coisa, foi ficando estranho e pegajoso na minha língua. Eu detesto o gosto de cada um dos soros malucos da doutora mas, eu sei que o que ela faz é pro meu bem.
- E o que mais?
-  Sei lá... eu fui em uma missão.
- Eu já disse que missões em dias de teste são uma péssima ideia.
Eu entendo a preocupação dela. Nunca se sabe quando esses testes malucos vão comprometer algum sentido meu durante minhas missões. Uma visão turva, um cambalear errado e eu posso facilmente comer capim pela raiz.
- Eu sei, eu sei... mas era importante.
- Pra você, qualquer missãozinha é importante.
As vezes a doutora me trata como se eu ainda fosse a criancinha indefesa que a Sara trouxe pra se abrigar no laboratório dela. Ela ainda tem um jarro cheio de pirulitos, que era o que ela me dava para cooperar com os exames mais invasivos.
- Não vem ao caso, doutora. Voltando a como me senti... bom... eu me senti bem, como se eu tivesse com cem por cento da minha força, sabe? Como se eu tivesse acabado de me alimentar...
- Bom, bom... a ideia é essa mesma. Te dar saciedade pra você não precisar matar mais ninguém...
- Aí eu tava tão forte que consegui matar mais de 20 pessoas sem nem disparar a arma. Eu tava super veloz... eu corri por toda a mansão matando cada capanga, cada segurança... eu não deixei ninguém vivo. Eu era a super Alice...
- Bom, bom... pera, o que?
- Algo de errado?
- Não era pra você ficar tão rápida e... você que fez a chacina na mansão Mafalaia?
- Foi...
- Santo Deus... você é louca?
- Foi facílimo... sem falar que não suspeitam de mim... Acham que foi uma gangue...
A dra. Rosa levantou de seu banquinho, ela foi de um lado para o outro buscando alguma coisa. Eu sentei na maca de lavagem.
- Doutora, ta tudo bem?
- Claro que não menina... você não pode chamar tanta atenção assim...
- Que atenção doutora? Ninguém sonha que fui eu...
- Ninguém sonha agora minha filha...
- O que você quer dizer com isso?
A doutora parou, deu um breve suspiro e sorriu pra mim...
- Nada minha filha, eu só sou uma velha doida e preocupada com uma garotinha que eu ajudei a criar com muito amor e carinho... eu tenho medo de que algum dia você seja tirada de mim, sabe? já me tiraram gente demais nesta vida...
A doutora me olhou de uma forma doce, chegou perto de mim e fez carinho em meu cabelo. Ela sempre foi assim desde que me lembro, uma pessoa meiga, gentil e meio doida. Falando sobre perder pessoas e nunca dizendo quem eram essas pessoas... As vezes sinto que ela tem tantas histórias não contadas que seria impossível numerá-las.
- Doutora, quanto ao soro?
- Ele não parece muito eficiente... eu vou tentar melhorá-lo durante essa semana. Que tal você voltar daqui a uns 4 dias? Creio que será o suficiente para um novo soro... você pode me dar mais sangue para usá-lo em testes?
Eu apenas estiquei o braço enquanto ela pegava a seringa. Ela tirou o líquido vermelho-escuro de minhas veias, duas ampolas cheias.
- Por hoje é só minha querida, mas me diga, como está indo sua reconciliação com a Mel?
- Nada bem doutora... acho que foi uma péssima ideia pedir ajuda a ela...
- Por que?
- Ela é muito certinha, fica querendo seguir regras...
- Foi assim que Sara a criou... eu fico impressionada como ela conseguiu dar uma criação tão diferente pra cada uma de vocês...
- Somos como água e óleo... totalmente diferentes.
- Eu não vejo vocês duas assim.
- Então como você vê a gente doutora?
- Você é rápida e certeira em suas escolhas, independente das consequências. A Mel é ponderada e calma, ela evita fazer qualquer escolha sem antes e analisar tudo. Vocês duas buscam justiça da forma de vocês.
- E daí?
- Bom... é como se você fosse a espada e a Mel a balança da justiça. As duas juntas formam um equilíbrio.
Não tem como eu e a Mel sermos o equilíbrio uma da outra. Eu, para psicopata faltou só um pouquinho, a Mel para maníaca compulsiva também. Mais fácil a gente se matar do que ser o equilíbrio uma da outra. Essa velha tá ficando cada dia mais caduca.
- Eu não entendi a onde você quer chegar...
A doutora pegou meu rosto e me olhou nos olhos. Eu vi as marcas que ela tinha por conta de sua idade avançada.
- Alice, você e a Mel devem trabalhar juntas se realmente querem justiça. Existem coisas acontecendo que nenhuma de vocês duas imaginam e, provavelmente, apenas com a cooperação de ambas, essas coisas irão se resolver.
- Você ta falando do assassinato da Sara?
- Acredite minha criança, vai muito além desse assassinato.
- Do que você tá falando doutora?
A doutora rosa me soltou e saiu andando. Eu a segui.
- Doutora me responda.
- Ainda não minha criança, ainda não é a hora de você saber de tais coisas. Você tem muito que crescer ainda, sabe?
- Eu já sou crescida! Tenho trinta anos! Eu não sou mais a jovenzinha que você outrora conheceu.
Ela se virou pra mim novamente, desta vez muito séria.
- Você só cresceu aqui.
Ela apontou para minha cabeça.
- Você precisa crescer aqui agora.
Ela apontou para o meu coração.
- Você precisa fazer as pazes com seus sentimentos, Alice. Sem isso, você nunca será capaz de fazer o necessário.
- Necessário pra que?
- Pra parar toda a insanidade que está acontecendo nesse momento.

ALMA VAZIAOnde histórias criam vida. Descubra agora