Com as duas mãos repousadas pensativamente sobre a barriga, Alice receou por um minuto, depois entrou no apartamento de vez.
No escuro, tateou à esquerda e encontrou um interruptor gosmento. Uma meia luz trepidante iluminou brandamente as lanternas chinesas espalhadas pelo ambiente, que era decorado na mesma linha temática do salão da pastelaria.
Uma sala ampla, mas que chegava a ser claustrofóbica por conta do labirinto de móveis antigos e da quantidade excessiva de quinquilharias e decorações próprias da cultura oriental.
Aos fundos da sala, um corredor que ligava aos outros cômodos e uma escada em caracol que dava acesso à cobertura. Janelas amplas e escancaradas completavam o cenário.
Andou pelas pontas dos pés até o corredor escuro quando foi surpreendida por uma voz que vinha de suas costas.
Camuflado o tempo todo em uma poltrona ao lado esquerdo da porta, Hangy aguardava em silêncio, vestido apenas com um samba canção furado, chinelos de dedos e seu chapéu de sempre.
- Pode deixar na mesa, minha criança.
- Sim Sr. Hangy!
- Está assustada?
- Tive um dia difícil hoje... - respondeu, enquanto depositava a marmita sobre a mesa.
- Você deve estar com muita fome... Vamos, sente-se à mesa, e comungue comigo desta refeição. - disse Hangy, sem tirar os olhos da barriga saliente de Alice.
- Muito obrigado, mas tudo o que eu quero agora é minha cama, não aguento mais nenhum minuto em pé...
- Sabe Alice, nós temos câmeras no elevador... Notei que você ficou parada nele por mais de uma hora. A comida deve ter esfriado...
Alice tateou a marmita, e então o frio do alumínio atingiu diretamente a sua espinha.
"Estava quente quando entrei no elevador".
Muitas perguntas surgiram em sua mente, então concluiu que não seria a primeira vez que tivera lapsos temporais.
- Vocês sabiam o tempo todo? Dos fungos?
- Do que está falando? Das drogas que usaram no banheiro?
- Vocês têm câmeras nos banheiros?
- Minhas filhas são meus olhos, elas estão por toda a parte...
- Me diga o que é esse fungo que me atacou - disse Alice enquanto erguia sua mão esquerda, mostrando o dedo mínimo.
- Sente-se à mesa, enquanto eu ligo para um especialista da medicina oriental para cuidar de vocês...
- Por que todos ignoram esse surto de fungos por toda parte?
- Não tem fungo nenhum, minha pequena! É tudo fruto da sua imaginação... Sente-se enquanto o médico chega...
Descabelada e sentindo-se uma louca completa, Alice retornou cautelosamente em direção à porta, pretendendo sair o mais rápido possível daquele lugar. Chegou a tocar a maçaneta, mas algo a impediu de prosseguir. Mais uma vez, estava paralisada.
Contra a sua vontade, ela se curvou em direção à poltrona velha onde Hangy repousava, fitando-o nos olhos.
Pensou em olhar novamente para a porta, mas no meio de seu movimento a sua cabeça congelou, e então retornou à posição inicial.
De alguma forma bizarra Alice estava sendo controlada tal qual uma marionete barata, quase conseguia ver o reflexo dos pequenos cordões miceliais, e, a essa altura, restou claro que seus atos premeditados estavam fora de controle...
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MICÉLIOS
HorrorQuando um fungo cósmico ataca Alice, uma jovem privilegiada, vaidosa e preconceituosa, pondo em xeque sua sanidade mental e seus preceitos ideológicos, um terror psicodélico desperta. Desde que uma pastelaria chinesa surgiu na vizinhança as pessoas...