— Mei, Meilin, Meifen, Mingxia, Mingyu, Mifan e Mulan! — berrou Yuga.
As filhas de Yuga, que lembravam a aparência física da mãe, pareciam clones umas das outras, e eram sempre chamadas nessa exata ordem.
A velocidade e a entonação pela qual eram convocadas era algo tão peculiar que soava, para muitos, como se fosse um único nome.
Alice demorara três meses para descobrir que não eram chamadas em uma ordem alfabética, mas, sim, de idade.
Embora fossem mais velhas, as irmãs eram muito pequenas e delicadas, destoando do irmão caçula, que puxou ao pai.
Atendendo prontamente ao chamado, todas se reuniram à esquerda de Alice, e começaram a discutir em sua língua nativa.
Alice sempre odiava quando isso acontecia.
Durante a reunião, reparou que, por vezes, Mulan a fitava descaradamente. Teve a impressão de escutar risadinhas abafadas. Isso tudo a estava deixando muito nervosa. Era como se todos estivessem falando dela, e possivelmente estivessem mesmo.
Conseguia pensar em mil motivos para ser mandada embora, mas esperava que não fosse neste dia. Afinal, ainda necessitava de uma pequena fortuna para quitar suas dívidas e não queria ter que recorrer novamente aos seus pais, que já haviam começado, há algum tempo, a questionar veementemente suas habilidades de morar sozinha.
O primeiro motivo que podia imaginar como uma real ameaça ao seu emprego era a sua impontualidade crônica. Ninguém podia compreender, mas Alice sempre tinha uma justificativa individualizada para cada um de seus atrasos. Era como se, toda vez que saísse de casa, o universo pregasse uma peça nela, vez que cada atraso decorria de fatores peculiares que fugiam ao seu controle. Não considerava seus atrasos como mera desídia, mas sim de algo profundo e cármico que prejudicava não só seus compromissos profissionais, como também os pessoais.
Mas os chineses que ali trabalhavam não podiam compreender tais motivos, afinal, eles moravam todos na parte residencial do edifício Madeira Negra, que mais parecia uma colônia oriental.
Os fungos estão evoluindo!
( Imagem do fungo Cordyceps Helenaum insidiis cum divitibus in occultism em busca de seu hospedeiro intermediário)
— Quanto custa o pastel? — perguntou o primeiro cliente do dia.
Alice apontou para a tabela de preços acima de sua cabeça.
— E vocês têm pastel de que?
— Senhor, os sabores estão aqui neste quadro — apontou. — Os riscados estão em falta.
— Que absurdo! Só tem a opção de pastel de queijo?
— Tem a opção de não comprar! Tem a opção de palmito também, mas hoje eu não recomendo...
O cliente saiu indignado.
Alice não ligava, pois, da mesma forma que não compreendia bem seus patrões (ainda que eles se esforçassem muito em aprender a língua pátria de Alice, chegando a ensaiar pequenas frases, com um sotaque característico), notava que eles também tinham muita dificuldade em entendê-la, principalmente quando ela falava rápido e ironicamente com os clientes.
— O que ele disse? Por que o cliente está saindo bravo? — questionou Yuga.
— Ele está nervoso pois não há pastel de carne.
— Temos sim, esse cliente vem aqui todo dia, é "VIP", vá atrás dele agora! — Vou preparar um pastel de carne para ele...
O homem já estava atravessando a rua quando Alice saiu gritando por ele.
O chamado, contudo, foi ignorado. Ele parecia estar usando fones de ouvido. Se ao menos Alice tivesse perguntado o seu nome, como manda o protocolo de atendimento da loja, poderia chamar sua atenção com mais facilidade.
Precisava do emprego! Então, respirou fundo e saiu correndo em busca do cliente, enquanto repetia mentalmente: "Faço isso pela beleza! Faço isso pela beleza!".
Não o teria alcançado se ele não tivesse aguardado a abertura do sinal de pedestres para atravessar a rua.
Escutou-se uma buzina alta. — Cuidado! — gritou um pedestre.
Um enorme caminhão de carga havia furado o sinal e parecia descontrolado...
Alice puxou o cliente pelo braço com tanta força que os dois acabaram caindo na calçada. Antes que ele pudesse reclamar, o caminhão desviou de ambos e tombou.
Na sequência outros três carros se envolveram no acidente, causando um tumulto imediato.
A carga de mercadorias havia se espalhado completamente pela rua.
Um homem, usando uma máscara frigorífica de gás, saltou do caminhão, e veio em direção à Alice, fitando-a por um instante, pouco antes de sumir na multidão.
A respiração dele era lenta, e embaçava a máscara de uma forma perturbadora.
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MICÉLIOS
TerrorQuando um fungo cósmico ataca Alice, uma jovem privilegiada, vaidosa e preconceituosa, pondo em xeque sua sanidade mental e seus preceitos ideológicos, um terror psicodélico desperta. Desde que uma pastelaria chinesa surgiu na vizinhança as pessoas...