ELEVAÇÃO

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Todos já estavam aguardando ansiosamente pelo almoço, em suas respectivas mesas, quando Alice abriu as portas soberbas, e barulhentas, do salão de eventos que havia aos fundos do templo da Elevação, rompendo o silêncio, e atraindo a atenção de todos.

O local era amplo e arejado por grandes janelas redondas e repletas de vitrais que reverberavam a luz do sol (e da lua) em espectros olímpicos.

O teto, as paredes, e o piso eram confeccionados em uma resina acústica, suavemente amarelada e repleta de detalhes dourados.

Ao centro havia uma grande mesa de marfim, gravitada por 13 cadeiras douradas e um majestoso lustre de cristal cravejado de pequenas gotas de ouro que projetava uma luz divina no ambiente.

Antes que Alice pudesse expressar qualquer reação, Ivana subiu correndo no púlpito localizado aos fundos do salão e lançou mão do microfone dourado, para anunciar a presença de Alice:

— Irmãs e irmãos, é com muita satisfação que venho comunicar que nosso almoço de hoje acaba de ser promovido para um grande churrasco! Estão todos convidados!

— Amém — gritaram todos.

Agora vamos agradecer à Deus por nossa irmã Alice ter provido toda a carne!

— Graças a Deus! — falaram todos.

— Desde o tempo em que os comunistas entregaram aos chineses o monopólio da exportação de todo o nosso gado nacional, levando a falência nossos açougues e produtores locais, nunca mais tivemos condições de arcar com os custos de um bom e velho churrasco — completou Abel. Sua voz era naturalmente alta e grave, e preenchia o ambiente sem necessidade do uso de qualquer microfone.

— Mas hoje não! — completou Ivana. — Depois de tantas vacas magras, finalmente as graças estão chegando.

— Amém — gritaram todos.

— Agora passarei o microfone para a nossa irmã Alice, que quer dizer umas palavras.

Alice ficou furiosa, nunca gostou de falar em público, além disso se sentia culpada.

— Quero agradecer a Deus por todos os irmãos e irmãs que me acolheram nesta igreja, e por me ajudarem tantas vezes em momentos de necessidade. Durante muito tempo eu não pude sequer contribuir com o dízimo. Mas hoje, com a graça de Deus, finalmente minha vida foi abençoada e poderei contribuir com essa humilde oferenda que entrego aos meus irmãos.

— Graças a Deus — falaram todos.

Alice não sabia mais o que falar, e começou a ficar enrubescida. Então o pastor Simão a interrompeu, pegando o microfone, e concluiu:

— Agradecemos a irmã Alice, mas antes de iniciarmos os preparativos para o almoço vamos aos avisos importantes de nossa igreja.

Ninguém conhecia ao certo a sua idade, mas Simão era o mais velho de todos. Seus cabelos eram tingidos de loiro, mas tinha olhos escuros. Andava sempre bem vestido com seus ternos eclesiásticos de tom bege amarelado.

— Sejam bem vindos meus irmãos e minhas irmãs! Deus está ordenando que eu vos alerte quanto a um assunto perigoso, do qual devemos vigiar: —Tomem muito cuidado com o uso do celular. Não só a televisão, mas também a internet é um instrumento de satanás para desviar os cristãos da fé. As indústrias televisivas e da internet estão usando seus satélites chineses e suas antenas de dados, que são os dedos do demônio, para disseminar vídeos e livros com ideologias de miscigenação, ateísmo, feminismo, satanismo e homossexualismo.

As pessoas concordavam com acenos de cabeça, enquanto o pastor prosseguia em seu discurso:

— Vejam a China, um povo sem Deus! Onde o consumismo comunista predomina e se espalha pelo mundo. São esses estrangeiros que vêm tomar nossos empregos e nossa comida! Quando foi nosso último churrasco? As indústrias chinesas estão ficando bilionárias enquanto nosso país está lançado na miséria. Vamos amarrar e mandar embora!

— Amém — gritaram todos.

— E lembrem-se bem: nenhuma praga se aproximará de vocês se estiverem com Ele. Então mantenham-se vigiantes até o próximo culto, quando ofertaremos a seiva ungida das árvores mais elevadas da natureza, para que a virtude da cura os fortaleça! — disse Simão, encerrando seu discurso, enquanto todos se cumprimentavam com calorosos apertos de mão.

Antes, contudo, de se recolher aos seus aposentos, Simão olhou o relógio e disse: — Já está tarde, então que todas as mulheres se dirijam imediatamente à cozinha para o preparo do almoço. Aos homens, peço que permaneçam no salão para os demais preparativos.

— Sim pastor — responderam em coro, inclinando a cabeça como um gesto de subserviência.

Assim que as mulheres atravessaram o ambiente, contornando o púlpito e sumindo pela rede oculta de corredores estreitos que ligavam o salão aos banheiros, à cozinha e à entrada da fornalha subterrânea, os homens relaxaram.

Unidos, eles rapidamente arrastaram um par de mesas e suas cadeiras de plástico até o canto direito do salão, e então se acomodaram na grande mesa principal, onde começaram a confraternizar alegremente.

Enquanto isso, na cozinha, Alice começou a desossar um pedaço de carne, com dificuldade, enquanto pensava o quão rápido Abel poderia concluir essa tarefa, caso não fosse um homem.

A despeito de trabalhar em uma espécie de restaurante, Alice não chegava nem perto da cozinha nojenta da pastelaria, e não dispunha da menor habilidade culinária. Muito pelo contrário, chegava até mesmo a ser estabanada, mesmo nas pequenas tarefas culinárias.

Metodicamente limpa e organizada, a cozinha industrial da igreja era ampla e totalmente azulejada com peças alvas e brilhantes do chão ao teto.

Seu perímetro era contornado por uma bancada de mármore branco, no qual cubas, fornos, freezers e exaustores eram acoplados de forma planejada.

Contava ainda com toda a sorte de utensílios e instrumentos de ponta, com destaque para um faqueiro de 51 peças instalado ao centro de uma ilha feita do mesmo material das bancadas. Em suma, era um delírio de consumo se comparado com as instalações podres e as facas enferrujadas da pastelaria. A única coisa em comum entre as cozinhas era o moedor de carne industrial, de uma marca oriental, que ficava aos pés da única janela redonda que havia, nos fundos da cozinha.

"Cuidado com as mãos", advertia a impressão no aparelho.

Pegou a menor faca que encontrou, e observou sua empunhadura firme e o fio que era afiado como uma navalha. Um produto de qualidade.

"Mas afinal onde os irmãos arrumavam verba para comprar facas tão boas?", pensou.

Então reservou um pedaço de carne e se dirigiu até os fundos da cozinha, dando as costas para as demais.

Convenientemente, a carne, outrora descartada, ainda mantinha sinais expressivos de frescura e vermelhidão.

Já estava prestes a desossar seu pedaço, quando notou algo estranho.

Algo visível apenas para um olhar treinado de uma mulher fresca e enjoada com o preparo de qualquer alimento. 

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora