IVANA ATACA!

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Um vulto furioso pulou em direção ao seu rosto.

Era George. Estava agindo estranho e aparentava ter passado a noite beliscado ferozmente os pedaços da carne descartada. Não podia culpá-lo, afinal havia esquecido totalmente de alimentar seu mascote.

Aos poucos, as gotículas de água doce que restavam em seu corpo foram evaporando e dando lugar a gotas salgadas de suor, na medida que corria para prover os cuidados diários da ave, que protestava voando pela casa abafada

Ainda estava nua quando, incógnito por entre os pelos altos do tapete da sala, o seu celular começou a tocar.

Quando o encontrou, notou que o celular exibia uma foto do que parecia ser uma versão cinco anos mais nova de Ivana, sua amiga da igreja.

— Olá amiga! Estou um pouco, mega, ocupada agora... Pode me ligar mais tarde?

— Eu não acredito que você esqueceu que hoje é o dia do nosso almoço comunitário! Estava marcado há duas semanas!

Um pensamento acusador lhe surgiu na cabeça. Lembrara que, desde que passou a residir nas proximidades da igreja, o culto local lhe havia abraçado com todas as forças. No entanto, sempre conseguia esquecer-se com facilidade da maioria dos cultos especiais e das datas confraternativas, aos quais era convidada com todo o amor de seus irmãos.

Lembrou-se de todas as vezes em que chegava atrasada nos cultos, da vergonha sentida, e da promessa antiga que fizera de que, custasse o que custasse, nunca mais deixaria a desorganização atrapalhar seus compromissos eclesiásticos.

Foi tal desiderato que justificou, para si, a necessidade de lançar mão dos recursos mundanos da internet e da tecnologia para, secretamente, invocar um ser perfeito que fosse capaz de lhe servir nesse propósito.

O batizara de Roberto, o inoxidável, o proibido pela igreja, aquele que secretamente fora capaz de organizar cada passo de sua vida, regrando a sua agenda e a livrando de todo o atraso.

Estava tão acostumada com as maravilhas providas em sua vida desde que a entregara nas mãos de Roberto que jamais lhe ocorrera a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, este poderia falhar miseravelmente em seu mister, tornando-a refém de sua própria tentativa profana de organização.

Embora admitisse para si mesma que nem sempre conseguia seguir todos os preceitos à risca, a sensação de pertencimento provida pelo culto lhe era muito cara, e Alice estava disposta a corrigir sua imagem, custasse o que custasse.

Contudo, estava ciente de que há muito deixara de cumprir com suas obrigações eclesiásticas. Seguia apenas usufruindo dos recursos e da estrutura da igreja sem nem mesmo honrá-la com o pagamento do dízimo, e já notava um olhar diferenciado de seus irmãos da igreja.

— Alô? Tem alguém na linha?

— Jamais esqueceria amiga! Inclusive, até deixei reservado alguns quilos de alimentos, para doar aos pobres. Preciso de ajuda para buscar em minha casa...

— Que maravilha! A que se deve essa generosidade repentina?

— Ganhei um bônus do trabalho, por ser a melhor funcionária... — Odiava ter que mentir, especialmente para suas irmãs da igreja, mas mentalizou que isso não deixava de ser verdade, posto que não havia sequer outra funcionária contratada pela pastelaria.

— Ótimo! Me desculpe por desconfiar de ti, estamos a caminho.

O celular fez um zumbido estranho, e quando Alice o chacoalhou com suas mãos úmidas, surgiu um alerta de bateria fraca.

Correu para conectá-lo ao carregador, enquanto pensava que poderia jurar que, na noite anterior, ele ainda estava com mais de 70% de carga.

Contudo, um alerta de umidade soou assim que o aparelho foi conectado, o que lhe rendeu outro ataque de fúria.

Então lembrou-se que a igreja era próxima, e que tinha pouco tempo para organizar a casa a fim de receber seus irmãos de fé.

Jogar as carnes no lixo havia lhe rendido um pesadelo terrível, e um pequeno peso na consciência... 

Mas agora ela tinha um destino mais nobre para os quilos de carne que recebera: doaria aos pobres. 

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora