Quem comeu?

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Quando terminaram de orar, e tudo ficou pronto, Paulo apareceu.

Tão forte quanto Iago, os dois eram separados apenas por uma barriga de chopp e pelo par extremamente contíguo de olhos verdes e estrábicos.

Bom dia irmãos! — berrou. Em seguida juntou-se aos homens, cumprimentando-os um a um, enquanto as mulheres serviam a comida.

Boa tarde irmão! — disse Gabriela.

— Oi! Cheguei agora, me traz um prato!

— Você está achando que ela é sua empregada? — disse Ivana. Aliás você chega sempre na hora boa hein...

— Deixa, eu pego... — atravessou Alice.

— Oi meu anjo, quanto tempo não te vejo — respondeu Paulo. — Se precisar de ajuda eu vou buscar com você...

À exceção de Lucas, todos os homens riram enquanto Alice e Gabriela iam até a cozinha. Ainda havia uma pilha de pratos de sopa limpos, mas Alice escolhera o que estava abandonado ao lado da lixeira, retirando tão somente o excesso de farofa, enquanto Gabriela se entupia de pães que afanara em meio à discussão.

No caminho de volta, Alice tomou um susto com outra aparição de Ivana.

— Deixe que eu levo para ele...Agora vá logo chamar a quilos mortais antes que a comida acabe, porque já estão todos se servindo...

Alice ficou pensando que tipos de obscenidades Ivana faria com o prato antes de entregar à Paulo, enquanto retornava para chamar a amiga.

Uma vez, na pastelaria, flagrara Mingxia enfiando um pastel na virilha, antes de entregar à uma cliente que tinha reclamado duas vezes da demora.

— Esse Paulo é preguiçoso, mas sabe animar uma festa. — admitiu Gabriela, em um suspiro.

— Respeite-se! — corrigiu Ivana.

Sentavam-se em uma mesa de plástico, segregadas dos homens, os quais riam e cantarolavam à mesa principal, em torno de Simão, com exceção de Abel que regressara à fornalha.

Alice não sabia com quem concordar, então sorriu sem mostrar os dentes.

— Quem comeu os melhores pedaços de carne? Daqui só enxergo ossos... — reclamou Gabriela.

Depois dos varões, Gabriela foi a primeira a se servir, e a partir daí mal se ouvia a voz dela.

Os homens comiam feito porcos, e Gabriela comia feito um homem. Seu prato fundo conseguia equilibrar uma montanha everestal de comida.

Alice chegou a montar um prato, mas não tocou na comida. Sua atenção divagou para os seus arredores, e foi então reparou que havia um ponto de bolor florescendo na borda do último bife suculento que havia no prato de Gabriela.

O pensamento de Alice era processado em câmera lenta, mas o bife era fatiado por Gabriela em um ritmo acelerado. Neste pequeno hiato mental, o bife já havia sido completamente devorado, exceto pela ponta embolorada, que acabara de levar uma garfada tão violenta que arranhou a louça em um ruído insuportável.

— Eu acho melhor você parar de comer!!!

— Até tu, amiga? — disse Gabriela com olhares lacrimejantes. — Então deixou a mesa e seguiu em direção do banheiro.

— Não olhe para mim! desta vez eu não falei nada... — pontuou Ivana, com a boca cheia de farofa.

— Mas eu não quis dizer isso!

— Mas disse! Deus castiga hein!

— Mas é você que fica criticando ela o tempo todo! Não percebeu que é por sua causa que ela tem andado deprimida, chorando pelos cantos e tomando todos esses remédios para vomitar?

— Eu falo pelo bem dela. Ela é gorda!

Alice se movimentou na mesa, disposta a ir atrás de Gabriela, mas Ivana a deteve.

— Ela é gorda! Sabes que a gula é um pecado imperdoável... E ela já está sendo mal vista na igreja... Talvez se ela fizesse um regime de vez em quando, como você que não comeu nada hoje, teria um corpo normal.

Alice engoliu em seco, pensando no tipo de exemplo que dava, e não conseguiu reunir argumentos em sua defesa. Então baixou a cabeça e resmungou:

— A coisa que mais odeio é ver minhas amigas brigando...

— Esquece isso, veja quem está olhando para cá...

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora