ÀS ÁRVORES

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Alice deu um passo para trás e pisou no pé de um senhor. Pediu desculpas, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. A lotação fazia com que as pessoas se encostassem a todo momento. Sentiu um movimento estranho. Um passageiro desequilibrado relara em sua mão esquerda, que descansava ao lado do corpo.

Na próxima curva, Alice precisou dar outro passo a trás para não cair, e acabou pisando novamente nos pés do mesmo homem. Sentiu-se constrangida pelo aborrecimento causado, ainda que fruto de um episódio de vertigem e mal estar, considerava que os demais passageiros não tinham culpa.

A senhora sentada à sua frente lançou um olhar com severo julgamento em sua direção.

Estaria afinal a senhora correta em seu olhar julgador? Teria mesmo chegado a este ponto de ser julgada por velhinhas do ônibus? Ou pior, estaria finalmente enlouquecendo? Só estava certa de uma coisa, estava sentindo sintomas de pré-morte e melhor seria se não tivesse saído de casa.

Alice mal se aguentava em pé, quando suas narinas congestionadas foram capazes de farejar um forte odor de água sanitária, que se mesclou ao suor vertido por debaixo do seu moletom.

Um dedo enrugado cutucou sua coxa.

— Minha filha, sente-se aqui no meu lugar.

Não entendera o motivo de uma senhora idosa ter lhe oferecido seu assento preferencial. Mas agradeceu mentalmente por poder descansar. "Devo estar ficando retardada, a explicação era óbvia", pensou Alice, concluindo que a idosa provavelmente desembarcaria no próximo ponto...

Mas a senhora permaneceu em pé, e não desembarcou.

Tão logo se acomodou, contudo, Alice foi tomada por um súbito calor nas pernas. Então amaldiçoou todas as árvores genealógicas da senhora que lhe cedera o assento, que era disposto ligeiramente acima do motor do ônibus.

Passou a suar feito uma porca, então por três vezes falhou em abrir a janela que havia à sua esquerda. Sentiu-se secretamente impotente e envergonhada.

"Alguma criança deve passar super cola nessas janelas, não é possível!", pensou.

Somente quando Alice começou a tossir, deliberadamente, foi que algumas pessoas chegaram a abrir outras janelas do coletivo, aplacando o calor e o ar abafado. 

Sentiu que devia explicações. Percebeu mais olhares de julgamento em sua direção. Seria por que estava, agora, em um assento preferencial? Ou seria pelo fato de ela estar parecendo uma mendiga drogada e sem noção de responsabilidade? Ou ainda por outro motivo?

A roupa cinza que escolhera parecia evidenciar ainda mais as pizzas de suor que surgiram em torno de suas axilas. Sua pressão parecia ter baixado, e o vertigem voltou como se fosse um tapa ivânico.

Acelerado, o ônibus balançava de forma intermitente, de modo que Alice conseguia sentir cada imperfeição da pista ante a precariedade dos amortecedores, sobretudo naquele assento elevado.

'Velha safada!", pensou.

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