UMA IMAGEM REPUGNANTE

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Antes mesmo de se vestir, retirou os pacotes de carne do saco de lixo, dispondo-os sob a bancada da cozinha. Convenientemente, a carne seguia aparentando boa procedência, mesmo após ter posado fora da geladeira.

Neste instante reparou que, em uma atmosfera vibrante, as paredes brancas do apartamento começaram a suar frio, exalando um cheiro de bolor ainda mais intenso, como se tomadas por um sentimento satisfativo.

Inconvenientemente, um odor lipídico e pantanoso tomou conta do ambiente, a fazendo temer pelo julgamento impetuoso de Ivana.

Precisava pensar rápido, e então lembrou-se de que havia ainda um último recurso profano a sua disposição, algo que há muito tempo furtara da pastelaria, mas que mantinha reservado secretamente aos fundos da última gaveta do armário da lavanderia. Um incenso pagão, subtraído por impulso, cujo aroma intenso prometia ainda uma renovação espiritual e a entrega da pessoa amada em sete dias. Planejava usá-lo somente em uma situação especial, mas estava diante de uma emergência.

Pensando em Lucas, ela acendeu o incenso com urgência, espetando-o cuidadosamente em um dos pacotes de carne, e então dispôs ao seu lado uma bela embalagem, há muito esvaída, de um perfume importado que ganhara de sua mãe no Natal passado.

George deu outro espirro, e fugiu para a lavanderia.

O incenso ainda estava pela metade quando a campainha tocou.

Rapidamente, Alice apagou o incenso com os dedos, escondendo-o novamente na gaveta.

— Podem entrar, a porta está aberta!

Ivana foi a primeira a entrar. Seus olhos corriam rapidamente pelo apartamento em busca de um defeito. Não havia.

Até mesmo o cheiro de bolor havia sido disfarçado com sucesso.

— Que cheiro agradável! — disse Ivana, passando o dedo pelos móveis em uma busca frustrada por poeira sedimentada.

— É um perfume italiano, que uso na casa — respondeu, entregando à amiga a bela embalagem, hoje meramente decorativa, do que fora um excelente perfume de uso corporal, a despeito da fixação sofrível.

— Aqui está escrito "made in china". Os olhos críticos de Ivana correram para a cozinha. Eram de um tom de azul tão frio que pareciam arder ainda mais que os seus cabelos cor de fogo, petrificando instantaneamente a alma de quem fosse que a encarasse, com seu julgamento divino e impetuoso.

Estava no auge de seus 40 anos e não deixava nada a desejar em relação às mulheres mais jovens em quesito de ardência e beleza.

— Isso são cinzas? Não vai me dizer que está fumando! — disse Ivana, com os dedos sujos das migalhas de incenso queimado.

— De forma alguma, são apenas restos de fósforos que George deve ter espalhado pela casa...

— Muito que bem, saiba que o vício em cigarros é obra de satanás!

Os pacotes de carne eram enormes e saltavam aos olhos. Ivana abriu um pacote e examinou a carne, depois fez um sinal para que Abel, seu irmão mais velho, se aproximasse.

— A carne é de primeira! A cor avermelhada e o cheiro suave indicam que é boa e fresca... Os cortes são nobres ... — disse Abel, com propriedade.

Quando era jovem, Abel tinha longos cabelos ruivos, tais quais os de Ivana, e trabalhava no antigo frigorífico da família, que há 20 anos fora fechado pela vigilância sanitária. Em seus anos dourados, contudo, costumava se vangloriar de possuir a habilidade de, em poucos minutos, conseguir fatiar um boi vivo, em todos os seus cortes tradicionais.

Hoje, Abel é um senhor de 59 anos, que trabalha como tesoureiro da igreja, e suas longas tranças ruivas deram lugar a cabelos ralos e brancos.

— Alice, venha cá um instante. — Você confia em mim? Tenho um destino melhor para essa carne, seria um desperdício doar aos pobres... — disse Ivana, enquanto fazia sinal para que Iago entrasse, e ajudasse a retirar as sacolas.

Iago, que aparentava a mesma idade de Ivana, mas era 8 anos mais novo, atendeu prontamente o chamado. Era um homem forte, de olhos e cabelos castanhos, frequentemente escondidos por bonés e óculos escuros. A parte mais expressiva de seu rosto era a sua testa que se franzia de acordo com o seu estado de humor.

Todos usavam roupas amarelas, então Alice pediu que fossem indo na frente, a fim de que pudesse se ajustar ao figurino.

Quando finalmente desceu até o estacionamento, Alice reparou que as sacolas já estavam sendo alocadas em uma na pick-up amarela.

Do alto do volante, Lucas acenou para Alice, que ficou imediatamente enrubescida. Teria sentado ao seu lado, não fosse pela velocidade com que Ivana cortou sua dianteira.

Agora havia sobrado apenas um lugar espremido, ao lado de Abel, mas Alice teve um pensamento, um tanto quanto paranoico, do quanto que o velho adoraria sentar-se ao seu lado. Uma imagem repugnante das coxas se roçando surgiu em sua cabeça.

— Irei a pé... Aproveito e dou uma caminhadinha! — justificou. 

Assim teria mais tempo para pensar em como se livraria desta situação...

O porteiro abriu a passagem e deu bom dia a todos.

Ninguém respondeu. 

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora