RESTOS AMOLECIDOS

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- Nos tempos antigos, muitos do meu povo pereceram de fome, mas ninguém jamais morreu por comungar da divina carne viva, que nos é provida pelos animais da terra. - prosseguiu Hangy.

"Todos esses seres que caminham pelo mundo são, em verdade, um pequeno presente da Mãe Natureza.

"É natural, e muito mais saudável, do que os alimentos químicos e industrializados que se consome atualmente, por imposição do sistema capitalista, sem qualquer questionamento quanto à toxidade que impõem ao organismo com seus corantes e conservantes."

No escuro, uma barata cascuda levantou voo passou próximo à Alice, e ela recuou um passo, dando um grito abafado. Sua visão se acostumara com a penumbra, e ela reparou que pisara no que poderiam ser restos amolecidos de uma ratazana gorda, presa em uma ratoeira enferrujada, sendo devorada por formigas famintas.

- Esta carga enorme de carne que recolhemos... seria toda jogada fora pela prefeitura - prosseguiu Hangy - com tantas pessoas passando fome no mundo, e mesmo nesta praça, e com o preço em que a carne está, seria um grande pecado, e uma afronta à Natureza, jogar fora um alimento em bom estado, apenas por ter caído do caminhão.

O aglomerado de formigas se juntava a outras trilhas que desaguavam em uma grande fila de formigas que desviava meticulosamente da mesa antiga e sumia por detrás das frestas do elevador.

- Você acredita que certa vez eu cheguei a ser processado por alimentar um necessitado faminto, que tinha pedido um pastel, e acabara passando mal? As pessoas sempre desconfiam das coisas que vem de graça, mas ignoram as coisas que realmente fazem mal ao corpo e a alma. Aquele indigente misturava todos os tipos de lixos químicos, e depois veio acusar minha comida, dada de bom grado. Não acha uma desfeita?

- Agora vou lhe fazer uma oferta, como um sinal de agradecimento por todo o serviço prestado - disse Hangy, entregando à Alice vários pacotes de carne. - Ela mal conseguia se imaginar carregando a carne que, se fosse comprada em um mercado, seria equivalente ao que ganhara em quase todo o período em que trabalhou no Pastel do Céu.

"Recusar? Seria uma ofensa!", pensou Alice, enquanto estendia a mão para segurar as sacolas.

- Não se preocupe, minha criança, as boas formigas conseguem carregar até cem vezes o seu peso, e você é minha operária predileta.

"Nesta empresa, todos trabalhamos duro, como formigas motivadas a bem servir e alimentar os clientes. Agora vá para casa com imensa gratidão e lembre-se, a Natureza se enfurece com quem, por nojo, faz desfeita de um alimento tão nutritivo quanto essa carne.

"Que ela lhe sirva de alimento, enquanto muitos passam fome."

Alice apanhou a carne e agradeceu mecanicamente. Seus pensamentos estavam focados apenas em fugir daquele lugar.

Quando finalmente conseguiu arrastar todo o seu pagamento carnal para fora da loja, precisou sentar por um instante no meio fio para recuperar o fôlego. Reparou que era o mesmo local que outrora esteve congelada após o acidente. Foi quando notou um par de pilhas no chão. Deviam ter caído do caminhão.

Perdera, mais uma vez, a noção do tempo. Havia anoitecido rapidamente e só restara chamar um carro de aplicativo. Afinal, já era noite. A carne era pesada, era sexta feira, e ela merecia.

Atônita, tentou acionar o aplicativo de transporte quando foi acometida por outro ataque de fúria, que lhe trouxe rapidamente para a realidade de sua vida miserável.

"Cartão recusado", acusou o aplicativo.

Respirou fundo e abaixou a cabeça para pensar. Mesmo no escuro, ainda podia enxergar o chão ensanguentado enquanto atravessava a rua. A praça que outrora estava tomada por uma multidão, agora estava deserta. Só havia poucos indivíduos em situação de rua, e por Deus, alguns maníacos?

- Ei moça, o que tem na sacola?

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora