A CABEÇA MASTIGADA

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Uma multidão se formou em torno do acidente, e começou a saquear os produtos caídos. As pessoas surgiam dos carros, das ruas, e da rodoviária próxima.

— O que você está fazendo? — perguntou Yuga. — Ajude a levar para dentro.

Alice mal conseguia se mexer, estava em choque e permaneceu na calçada. Não reparou quando o cliente que tinha salvado a vida se levantou, saindo apressadamente em busca dos itens caídos do caminhão.

Os chineses estavam focados nos pedaços de carne. Eram pesados e demandavam uma logística própria. Conseguiram fazer mais de três viagens antes da polícia chegar.

Alguns pedaços de carne estavam mal embalados e em contato direto com o chão. A maioria era pesado demais para ser transportado por uma única pessoa.

Os demais produtos, como refrigerantes, doces e cervejas foram rapidamente levados pelos populares.

Apenas quando não havia mais nenhuma mercadoria no chão foi que as pessoas começaram a reparar nos detalhes do acidente.

— O motorista perdeu a cabeça! — constatou uma menininha, apontando com o dedo enrijecido, sem desgrudar do pacote de balas que catara.

Mas foi somente quando a mãe da criança deu um grito, que todos pararam feito estátuas.

O motorista tinha mesmo perdido a cabeça! E, então, uma multidão ainda maior se formou em torno do acidente.

A polícia e a imprensa chegaram antes dos médicos, e, em meio ao transtorno, os chineses se trancaram no restaurante.

— Olá! Meu nome é Carla, eu sou policial, você está bem? Viu alguma coisa?

— Nadinha! — respondeu Alice, ainda um pouco atônita.

— Tem certeza? Precisa de ajuda? — disse a policial, enquanto estendia a mão tomada por manchas despigmentadas, que podiam ser notadas inclusive em seu rosto e cabelo.

— Não precisa, estou bem!

— Tome cuidado, não está com uma boa feição...

— Vamos trabalhar! — gritou Yuga da sacada do restaurante.

Alice levantou-se em um salto, e correu até o seu posto de trabalho, ignorando por completo a abordagem policial.

— Rápido, ajude a catalogar e estocar no porão! — disse Yuga.

— Não vai caber nos freezers! — retrucou Alice. — Esta carne toda não tem procedência, nem mesmo marca ou data de validade.

— A aparência está boa! Minha família trabalha com isso a vida toda. Dá para comer, eu garanto! — disse Yuga, apontando para o corredor ao lado da cozinha, onde havia uma entrada para os banheiros na lateral esquerda, e, ao fundo, uma porta de madeira negra que dava para o porão.

Alice respirou fundo e se dirigiu até a entrada do porão.

A maçaneta da porta era oleosa e demandava uma firme empunhadura para ser aberta. Um fato curioso era que a porta, antiga e podre por debaixo da tinta preta, abria para dentro, e da direita para a esquerda.

Havia uma escadaria construída, provavelmente, com o mesmo material antigo da porta, que protestava com rangidos íntimos a cada passo dado. O porão era mal iluminado, pequeno, úmido e abafado. Um observador diria que as pessoas que nele adentravam se deparavam com uma espécie de gel atmosférico pesado e viscoso que fazia tudo se mover a passos largos.

Quando acendeu as luzes, na base da escada, reparou que as irmãs chinesas estavam reunidas ao seu entorno.

Com se não bastasse, passaram a sussurrar furtivamente em sua língua nativa.

Yuga desceu por último, fechado a porta antiga.

Foi então que, acompanhado do filho, Hangy surgiu, com uma lata de cerveja na mão esquerda e uma pomba assustada na direita. Haviam entrado pelo elevador de carga que ficava na extrema esquerda do porão.

Estão vendo esta cerveja? — disse Hangy. — Não é uma cerveja de marca famosa..., mas tudo tem marca! Tudo neste mundo é bom, e uma marca não garante a qualidade de qualquer produto.

Hangy era obeso e oleoso, e, ao contrário dos seus familiares, vestia-se com trapos largos e um chinelo cheio de dedos fedorentos, com unhas compridas e amareladas.

Ele tomou um gole de sua cerveja barata e então a colocou sobre a mesa rústica, de oito lugares, que havia no centro do porão. Acendeu um charuto de palha que era gordo como um dedo de gorila, e soltou uma baforada que impregnou o ambiente, deixando-o ainda mais turvo e fedorento.

Encontrei essa pobre criaturinha mancando na cobertura. Chocou-se com o vidro e não pode mais voar — disse, enquanto acariciava a pomba.

Então sentou-se em uma das cadeiras, que protestava, tal qual o assoalho do piso e da escada, à medida que ele se contorcia.

— Nós viemos de muito longe..., de um lugar onde, nos tempos de crise, tínhamos que comer qualquer coisa... — disse Hangy, antes de colocar a cabeça da pomba na boca. Depois tirou.

A pomba fitava Alice com olhares suplicantes, quando Hangy a colocou novamente na boca, e, com uma única mordida, arrancou sua cabeça fora.

Um som repugnante ecoou como um estalo na cabeça de Alice. Hangy mastigou mais duas vezes, então cuspiu os miolos da pomba na mão, e deu para o seu filho comer, dizendo:

— Felizes aqueles que tem alimento, em um mundo onde muitos morrem de fome.

O filho apavorado se recusava com os olhos.

Mas o pai o fitou de forma ameaçadora, e, traumatizado, o filho engoliu o choro..., e a cabeça mastigada.

— Não tenha nojo minha pequena — disse, referindo-se à Alice.

Neste momento, Alice olhou em volta, lembrando que estava trancada com eles no porão. 

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora