Você não vai experimentar?

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Uma hora depois, quando os demais itens do almoço já estavam prontos para serem servidos, uma reviravolta ocorreu no estomago clemente de Gabriela, quebrando o silêncio que pairava na cozinha antes mesmo de sua língua:

— Não aguento mais esperar! Será que essa carne não vai sair nunca? Já faz quase uma hora que estão assando... O cheiro de churrasco está muito forte! Já são 3 horas da tarde, e sinto que vou morrer de fome...

— Deixe de ser impaciente! Sabe muito bem que somente devemos comer após a elevada benção de nosso Pastor! Onde já se viu uma pessoa do seu tamanho pensando que vai morrer de fome? Seria uma boa piada, se não fosse um pecado terrível! Esperem aqui... — disse Ivana, saindo em direção ao salão.

Contudo, a cena com a qual se deparou quando chegou ao seu destino a deixou perplexa:

Realmente, os homens já vinham, há muito tempo, beliscando em silêncio os primeiros pedaços de carne, a medida em que iam ficando prontos, enquanto as mulheres apenas trabalhavam na cozinha feito escravas.

Lembrou-se de que, nos últimos almoços, Gabriela já havia se queixado de que os homens sempre comiam escondido, mas Ivana nunca tinha levado a sério o que chamava até então de delírios de uma gorda.

— Vamos ficar somente com os restos? — indagou Ivana.

As gargalhadas festivas deram lugar a um silêncio constrangedor. Então Abel montou um prato cheio de cortes suculentos, e pediu para que repassassem até as mãos de Ivana.

Ela puxou a louça com força, lançando um olhar de reprovação, e então a levou em direção à cozinha, enquanto se sentia indignada por não ter tido a capacidade de reparar antes na injustiça que ocorria por debaixo de seu nariz. A imagem nasal puxou um pensamento que aplacou seu sentimento de culpa: "Eu não tinha como adivinhar que eles seriam tão canalhas, só mesmo o faro apurado de uma gorda em jejum para farejar um churrasco sendo servido a quilômetros de distância...".

— Isso vai ter volta! — resmungou, enquanto abria a porta da cozinha.

Notou que Gabriela estava aplicando uma gotinha de creme na mão de Alice para retirar o cheiro forte de sangue, então abandonou o prato na bancada, e tomou com violência o frasco das amigas. — Quero um igual! — disse, enquanto espalhava uma dose generosa do creme nas mãos, e antebraços.

Gabriela aproveitou para pegar logo dois pedaços de carne.

— Calma, deixe um pouco pra Alice — disse Ivana.

— Me desculpe — respondeu constrangida.

Alice se fez de desentendida.

— Você não vai experimentar? Ou vai ficar aí fingindo demência? — reiterou Ivana, alcançando o prato à Alice.

— Estou de regime. — respondeu.

— Um pedaço de carne deste tamanhinho não engorda ninguém sua bobinha — disse Gabriela sorrindo amigavelmente.

— Olha quem está opinando: a gorda! — retrucou Ivana.

Gabriela baixou a cabeça, e se arrastou em direção ao banheiro.

Então Alice lançou um olhar de reprovação para Ivana, e foi atrás da amiga.

— Sobra mais! — gritou Ivana, enquanto as duas deixavam o ambiente.

Ivana revirou os olhos, e decidiu aproveitar a oportunidade para alimentar seu vício secreto. Fumaria na janela da cozinha.

Nunca perdera a oportunidade de fumar fora de casa, quando era deixada sozinha. Era tão profissional nisso que jamais fora pega em qualquer pecado. Aproximou-se furtivamente da janela, trazendo consigo o prato de carne, e sacou um cigarro, enquanto admirava a vista do grande bosque que havia aos fundos da igreja. Uma das poucas partes arborizadas do bairro industrial. Um recanto de paz e natureza que contrastava com a pia, ainda entupida.

Antes que pudesse acender o cigarro seu isqueiro escorregou por entre seus dedos cremosos, vindo a cair justamente no caldo turvo e sangrento.

Como explicaria um isqueiro achado quando do desentupimento da pia?

Fechou os olhos por um instante, então seu vício falou mais alto... Posicionou seu braço cautelosamente sob a cuba e contou mentalmente: "um, dois...".

Uma mão suplicante com uma ferida aberta surgiu agarrando o seu braço com força.

MICÉLIOSOnde histórias criam vida. Descubra agora