Famintas e furiosas

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— Um pedaço de carne para um pobre homem — implorou o mendigo do outro lado da janela, com seus olhos tão azuis e expressivos quanto os de Ivana. Então a mão calejada soltou o braço de Ivana, e se espalmou de forma pedante.

O coração de Ivana batia de forma fulminante, a deixando congelada por alguns instantes em face da audácia do pedinte, e do rompante empático que ela sentiu ao enxergar seu olhar perturbado refletido no dele.

Piscou por duas vezes, e então baixou a janelas com todas as forças sobre a mão sofrida do homem, que gemeu enquanto se contorcia para trás na tentativa de retirar a mão esmagada da janela.

O sangue dele começou a jorrar de sua chaga, juntando-se ao da pia, e então Ivana levantou abruptamente a janela, fazendo com que o andarilho caísse de costas, rolando pelo grande declive que havia entre o salão e o bosque.

Ivana suspirou aliviada e trancou a janela. Em seguida mergulhou as mãos na pia, agitando-as em fortes movimentos circulares e tateadores até encontrar o isqueiro. Estava estufado, inutilizável.

— O que está fazendo? — disse Alice.

— Estou desentupindo a pia! Alguém tem que limpar esta bagunça que vocês fizeram! — gritou Ivana, enquanto retirava manualmente parte do sebo que entupia o ralo, descartando-o, juntamente com o isqueiro e o cigarro, na lixeira mais próxima.

— Precisa de ajuda?

— Preciso que comessem logo a servir o almoço... Eu termino aqui...

Quando as águas turvas e sangrentas foram finalmente drenadas, Ivana reparou que, aos fundos da cuba, espreitava uma pequena faca pontiaguda.

"Essa foi por pouco!", pensou. "Isso somente pode ter sido fruto de um livramento divino... Certamente que eu sou protegida pelas graças de Deus".

Quando Ivana terminou de orar, um pensamento torpe lhe veio à cabeça: "quem poderia imaginar que haveria uma faca dentro da pia? Só pode ter sido obra da Maria Tonelada.".

Faminta e furiosa, reparou que o prato que abandonara ao lado da pia, ainda continha tiras enfarofadas de churrasco, que emanavam um cheiro apetitoso. Chegou a pegar um pedaço, mas acabou o descartando. Estava frio, e os homens certamente já estavam se servindo de pedaços mais quentes.

Então raspou o prato na boca do lixo, e seguiu em direção ao salão. No meio do caminho, se encontrou com o seu pastor.

— Eu já estava vindo te chamar! Está tudo pronto?

— Sim pastor, podemos começar...

— Então venha rápido! Vamos fazer uma oração...

Quando os dois chegaram ao salão, Ivana reparou que Lucas e Abel já estavam estrategicamente posicionados ao lado de Alice, da mesma forma que Gabriela se posicionava em frente à comida.

Então moveu-se rapidamente, esbarrando em Gabriela, e se alocando entre Alice e Lucas.

— Agora todos deem as mãos — ordenou o pastor.

Alice suspirou profundamente enquanto estendia a mão direita para Ivana e a esquerda para o velho, o qual passou a apertá-la com imensa satisfação e intimidade. 

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