— Nunca saia de casa sem uma boa produção — dizia sua mãe.
À medida que ficava mais velha os ensinamentos de sua mãe pareciam fazer cada vez mais sentido. O tempo que gastaria tomando um banho rápido teria ganho em dobro, em uma carona na pick-up de Lucas.
O que mais teria perdido? Um filho com cara de um anjinho? um casamento de sucesso com Lucas?
Coisas que jamais aconteceriam, pois, a oportunidade de um encontro perfeito surgira em um dia em que não estava produzida adequadamente.
Geralmente costumava se arrumar como se fosse a uma festa até mesmo para as atividades mais corriqueiras como ir à igreja ou comprar pão. Ainda que fosse para pegar um ônibus cheio de desafortunados e trabalhar em uma pastelaria gordurosa, sentia a necessidade de estar sempre limpa e bem produzida.
Sua mente seguia desfocada em pensamentos aéreos quando lembrou de sua realidade. Precisava deixar os delírios de lado e concentrar todas as suas energias em chegar no horário.
Aceitou mentalmente que havia acordado com o pé esquerdo.
Então respirou fundo, tomada pela consciência de que este era apenas um dia atípico, que demandava medidas extraordinárias de concentração e foco para que ela não perdesse a cabeça, nem o ônibus.
Considerava que uma das piores partes de trabalhar estava no fato ter que pegar ônibus. Tinha muito nojo de contatos físicos ou mesmo de qualquer proximidade social. Frequentemente o cheiro das pessoas a enjoava. Sentia-se humilhada com essas situações. Uma vez teve que expulsar um trabalhador de um ônibus aos gritos, dizendo: — Como alguém consegue feder a essas horas da manhã?
Muitas vezes, a caminhada da vergonha começava antes mesmo do embarque: sempre passava um vexame quando perdia o ônibus por estar distraída, ao telefone, ou quando, de outro giro, tinha que correr e ficar estendendo o braço histericamente e ainda assim o motorista não parava.
Mas dessa vez estava sentindo-se mal e surtada demais para se importar.
Desesperada, deixou o orgulho de lado e entrou no meio da rua gritando e acenando para o ônibus.
Sentiu uma vertigem e então tropeçou caindo de bunda na calçada. Sua bolsa se abriu e seu celular, maquiagem e outros itens foram ao chão. Por sorte, o motorista parou e esperou. Deu graças por não ter mais ninguém esperando no mesmo ponto para presenciar sua queda desastrada.
Quando entrou no ônibus, arquejando, como se sua alma fosse sair pela boca, o motorista alertou: — Moça, ainda tem um negócio caído ali de sua bolsa, olhe...
Somente quando recuperou seus pertences e embarcou no coletivo que notou que o ônibus estava cheio de testemunhas de sua queda. Teve vontade de pedir para ele abrir novamente a porta para que ela desembarcasse, de tanta vergonha. A impressão era de que todo mundo estava rindo da mais nova membra do clube dos perdedores.
Tateou pela bolsa em busca de seu cartão de passagem, e então encostou na leitora, que apitou de forma acusadora: cartão sem saldo. Sua vida financeira estava mesmo um desastre. Normalmente isso lhe renderia um mini ataque cardíaco...
"Mas hoje não satã!", pensou. Estava preparada pra situações como esta. Há muito tempo mantinha um saquinho com o valor exato da passagem no fundo de cada uma de suas bolsas.
Ainda sonolenta e com fortes vertigens, demorou mais de um minuto para conseguir localizar suas moedas. O ônibus já se aproximava do próximo ponto quando ela caiu novamente. Algumas moedas se espalharam pelo chão, e uma fila de passageiros se formou atrás dela enquanto ela tentava recuperar as moedas com sua visão turva e cabeça latejante. Sentiu-se ainda mais pressionada, e conseguia escutar o batucar de pés impacientes atrás de si, enquanto orava para que o valor da passagem não estivesse aumentado.
— Quem ainda usa moedas? — resmungou uma senhora atrás de si.
Sem exceção, todos no ônibus pareciam olhar para ela. Alice era uma pessoa que nunca passava despercebida, sobretudo em um ônibus. Era como se todos soubessem que no fundo ela não pertencia àquele cenário, um ser divino fora de seu habitat natural. A presença de Alice era magnética e muitos homens e até mesmo algumas mulheres flertavam com ela, de maneira desconfortável.
Mas dessa vez não sabia se estava sendo observada por sua beleza ou por sua humilhação. Então começou a criar uma paranoia delirante de que talvez todos estivessem rindo dela. Uma princesa que virou um sapo. Um anjo caído no ônibus, agachado a procura de suas moedas contadas.
Quando se levantou e entregou todo o dinheiro ao cobrador, notou que uma multidão furiosa e atrasada se espremia entre ela e o motorista. Havia ainda mais uma fila aguardando para entrar. Um senhor de idade parecia estar sorrindo maliciosamente.
Não havia conferido o valor entregue ao cobrador, então após uma pausa dramática, ele liberou sua entrada.
Uma dúvida lhe surgiu na cabeça. Teria ela de conseguido reunir o valor exato de moedas, ou tudo não passava de uma gentileza concedida em razão de sua beleza, ou pior, uma esmola, um ato de misericórdia em face de seu estado lastimável.
Então voltou para a realidade, e se locomoveu pelo ônibus, que já entrara em movimento, tateando pelos canos onde milhares de pessoas haviam se apoiado antes dela (e outras milhares se apoiariam depois), em busca de um lugar vago. Sua vertigem voltou, e ela sentiu que poderia desmaiar a qualquer tempo.
Quase caiu quando, involuntariamente, levou a mão no rosto a fim de coçar seu nariz entupido, e acabou por limpá-lo no braço do moletom. Em seguida, deu um espirro de ogro, que fez todos no ônibus ficarem em silêncio, e abrirem caminho. Essa sua tática era infalível. Todos no ônibus ficaram afastados dela, mas não a ponto de ceder seus lugares.
Ao menos conseguiu abrir passagem até os fundos do coletivo, sendo seguida pelos demais passageiros que iam se espremendo como sardinhas.
Localizou um espaço ideal para segurar-se, em frente a um assento individual e preferencial, acima do motor do ônibus, onde uma senhora sentava-se.
Alice segurava-se firmemente na barra aérea, em um alternar de mãos, sendo forçada a virar sua bolsa para frente por medo de ser furtada. O próximo ponto estava ainda mais cheio, e à medida que o ônibus andava mais pessoas embarcavam, acomodando-se como podiam.
— Quando também um homem se deitar com outro homem, como quem se deita com uma mulher, ambos fizeram abominação; Terão que ser executados, pois merecem a morte; e o seu sangue será sobre eles! — vociferou um pregador ao embarcar no coletivo.
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MICÉLIOS
HorrorQuando um fungo cósmico ataca Alice, uma jovem privilegiada, vaidosa e preconceituosa, pondo em xeque sua sanidade mental e seus preceitos ideológicos, um terror psicodélico desperta. Desde que uma pastelaria chinesa surgiu na vizinhança as pessoas...