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         Eu sinto o cheiro do café assim que acordo, tem sido assim há anos, café é o que me move. Além da música e do álcool, mas eu meio que não estou tão próxima disso mais, então sobra o café.
         Parece que o cheiro me passa uma mensagem de "acorda sua preguiçosa". Estou tão inebriada que preciso de alguns instantes e cair em mim, me lembrar do que aconteceu.
       Levanto um pouco a coberta só para confirmar que eu estou nua debaixo dela. Nos últimos dois anos e meio eu acordei várias vezes na cama de pessoas com quem fiz sexo casual e nem lembrava o nome, e posso dizer que era bem mais fácil.
       Eu só precisava sair da cama, me vestir, e dizer "a noite foi ótima", "estou atrasada". Então eu nunca mais veria a pessoa, não é uma caminhada da vergonha se você não sente vergonha nenhuma.
        Dessa vez é diferente, quando eu sair desse quarto haverá um homem com uma história complicada, e o filho dele, que é meu sobrinho. Nós ainda vamos pegar um longo voo juntos. Ou seja, haverá uma caminhada da vergonha.
       — Coragem. — Digo a mim mesma e lanço o cobertor para o chão.
       Meu corpo ainda está preguiçoso e eu sorrio lembrando de como isso começou no quintal vendo o nascer do sol. Eu não deveria sorrir com isso, deveria estar me dizendo que eu sou péssima, que nenhuma mulher transa com o marido da irmã meio ano após a morte dela.
         O sorriso acaba na hora que penso nisso. Eu sou uma pessoa horrível.
       — Coragem. — Repito com mais firmeza e levanto da cama.
       Tenho que encarar isso como a mulher de vinte e quatro anos que eu sou e não como uma recém saída da adolescência.
        Abro a mala ainda bagunçada jogada na canto do quarto e pego um jeans e camiseta. Puxo a bagunça do meu cabelo em um rabo de cavalo mal feito.
        Ouço as vozes de Mikey e Landon assim que abro a porta e então caminho para os encontrar na cozinha. Landon está servindo panquecas para o filho. Ele já tomou banho e só de olhar para ele consigo sentir o cheiro de limpeza.
        É estranho usar a casa dos nossos amigos como se fosse nossa, mas eles praticamente nos intimidaram a ficar aqui e depois entregar a chave para a mãe de Willow.
        — Bom dia garotos. — Passo pela mesa me inclinando para dar um beijo na testa de Mikey, que está vendo vídeos no celular, e depois vou para o armário buscar uma xícara.
        Tento ser o mais casual possível andando pela cozinha e não mantendo contato visual com Landon.
        — Dormiu bem? — Eu não perco o tom de insinuação na voz dele.
        Isso me obriga a fazer contato visual com ele por um instante. — Como um anjo.
        Ele sorri como se tivesse alguma piada interna, e na verdade tem, a piada somos nós. Me inclino sobre o balcão usando a cafeteira para me servir de uma xícara cheia de café. O líquido escuro ainda está escorrendo quando a mão de Landon sobe até meu cabelo só para tirar o laço dele e jogar em algum lugar no chão.
        Mechas encaracoladas caem sobre meu rosto e eu suspiro.
        — Sério? — Pergunto fazendo careta e me viro dando um gole no café, está forte. — Que horas são?
         — Quase meio dia. Eu dormi demais também, só acordei porque Mikey chamou. — Landon explica e depois aponta a mesa. — Coma um pouco porque só vai dar tempo de tomar um banho e fechar sua mala antes de ir para o aeroporto.
        Assinto e vou até a mesa puxando uma cadeira e me sento ao lado de Mikey.
       — Então amigão, gostou da festa ontem? — Pergunto a ele enquanto coloco uma panqueca no meu prato.
       — Uhum.
       Os olhos dele nem desgrudam da tela do celular, mesmo assim ainda tento insistir.
        — E você estava muito lindo. — Despejo a calda sobre a minha panqueca.
        — Obrigado, tia Ollie. — A mesma concentração ainda na tela do celular.
        Levo um pedaço de panqueca a boca, mas paro antes de morder. — Ótimo conversar com você Mikey.
        A cadeira ao meu lado é puxada quando estou mastigando o pedaço de panqueca que levei a boca. Lá está Landon, todo limpo e cheiroso, me olhando comer.
        — Para com isso. — Peço baixo e puxo a xícara dando mais um gole no café. — As pessoas merecem privacidade para comer.
       — Desculpe. — Ele se inclina e serve uma panqueca para ele também. — Henrich mandou uma mensagem avisando que já embarcaram.
       Isso, conversa casual é uma ótima coisa a se fazer agora, qualquer coisa que não deixe o clima estranho.
       — Willow estava precisando viajar, ainda bem que conseguiram. — Abro a minha boca espontaneamente para um bocejo longo. — Você e Mikey deveriam fazer um viagem quando der, tirar umas férias. Acho que pode ser bom para os dois.
        — Só nós dois?
        Me viro para ele ao ouvir a pergunta. Sim, só os dois, quem mais deveria ir com eles?
        — Talvez seus pais. — Sugiro e coloco um último pedaço da panqueca na boca.
        — Talvez. Mikey também gostaria se fosse você.
       Isso é ridículo. Não só a ideia de uma viagem, mas a conversa em si. É por isso que eu preferia transar com estranhos, nunca envolveria sentimentos, e sem sentimentos não teriam situações estranhas.
        — Vou lá tomar banho e dobrar as roupas na mala. — Empurro a cadeira fazendo um barulho alto. — Me avisa quando formos sair?
        Não espero para ouvir a resposta dele, simplesmente vou de volta para o quarto e faço o que disse a ele. Primeiro o banho.
       Por anos da minha vida eu fui do tipo que age antes de pensar, e agora eu penso o tempo todo, principalmente agora. É uma merda pensar demais agora,  no que falar perto de Landon, o que fazer, ainda mais agora.
        Eu queria ser sempre cem por cento eu perto dele, não calcular meus passos, mas dada a nossa realidade é praticamente impossível. Nossa história não foi feita para ser totalmente real, foi feita para ser resumida a uma viagem de férias ou uma transa anos depois.
        Nós sempre teremos a história dele e da Sarah entre nós, também temos o tempo, temos julgamentos, temos família. É muito maior do que nós dois.
        — Está pronta?
       A batida na porta quase uma hora depois me tira de todos os meus pensamentos. É hora de voltar para casa, o que por um lado é ótimo, vamos voltar a rotina normal, todos nós.
       — Sim. Vou sair em um minuto. — Respondo Landon alto ao invés de ir abrir a porta. — Pode chamar o táxi já.
       — Ok, chamando.
       Me levanto da cama e puxo a mala de cima dela, dou uma última olhada nela e sorrio. Querendo ou não eu passei ótimos momentos nela algumas horas atrás.
        — Tia Ollie eu posso ir na janela? Por favor. — Michael pede assim que saio do quarto unindo as duas mãos na frente do rosto.
        Landon assente para mim como se já soubesse que eu ia o olhar para pedir a resposta.
        — Tudo bem, dessa vez você vai na janela. — Eu respondo a Mikey e então olho de volta para Landon. — Trancou tudo?
        — Sim, já chequei duas vezes. — Ele vem até mim e tira a minha mala da minha mão. — Vou levar lá para frente.
       Ele dá uma olhada muito longa para mim, me analisando. Não sei se ele está esperando algo de mim, se está não deveria. Como a boa covarde que sou quando o assunto é Landon eu desvio o olhar.
        Nós logo vamos para o táxi, fazemos uma parada na casa da mãe de Willow e depois seguimos para o aeroporto. Estou esperando o embarque, Landon e Mikey foram comprar um suco, quando recebo uma ligação da minha mãe.
       — Como é estar acordada as oito da manhã em um domingo só porque quis levantar cedo? — É a primeira coisa que digo ao atender.
       Pelas minhas contas devem ser oito da manhã agora em Chicago.
       — Você quer dizer ter hábitos saudáveis? Você deveria tentar. — Mamãe responde e é um pouco engraçado que ela não diz isso como uma ordem. Ela está se esforçando para nossa relação ser mais leve. — Que horas é o embarque?
        Olho para o painel apenas checando se nosso voo está no horário previsto.
        — O embarque começa em dez minutos. — Eu informo a ela. — Devemos chegar em Chicago às cinco e meia.
        Novamente quase nove horas em um voo, é meu pior pesadelo.
       — Ok, só liguei para conferir se estava tudo certo com o voo, tive medo de vocês estarem de ressaca após festa de casamento. As pessoas sempre ficam de pileque nessas festas.
        Rio da escolha de palavras dela, ela é tão educada e formal, as vezes fico até em dúvidas se nasci mesmo dela. — Você quer dizer bêbadas. Só tomei algumas taças de champanhe e até onde vi Landon mal bebeu, ele é um pai responsável. Um homem responsável.
       — Uhum.
       Minha mãe não é uma mulher de responder assim, sem usar palavras reais.
       — Eu vou te deixar em paz para embarcar, nós nos vemos a noite. — Ela se despede justo quando estou prestes a perguntar porque do "uhum". — Dê um beijo no Michael por mim.
       — Vou dar. Até mais tarde.
       Quando Landon e Mikey voltam o embarque já começou. Conforme combinado quando entramos é Mikey quem se senta na janela, Landon me faz sentar no meio porque o banco do corredor pode ser desconfortável, é onde ele se senta.
        Uma vez que decolamos Mikey se apressa em pedir para ver um filme.
        — Se importa se eu usar o notebook? Tenho uma reunião importante amanhã, quero dar uma estudada nos projetos.
        Por um instante me pergunto se ele está tentando fugir de uma conversa agora que teremos que passar nove horas juntos, se for isso eu não o culpo, se não fosse ele seria eu dando alguma desculpa.
        — Tudo bem, vou ouvir música e tentar cochilar um pouco. — Puxo o fone e coloco só um. — Se precisar de ajuda pro Mikey comer ou ir ao banheiro só me dizer.
        — Descansa.
        Coloca o outro fone e ainda estou procurando uma boa playlist quando sou pega desprevenida com um beijo na testa.
        — É isso que você faz com Mikey quando o coloca para dormir. — Eu digo a ele.
        — Algum problema? Prefere que eu te coloque para dormir de outra forma?
       Aperto o play em qualquer música e tento disfarçar que a insinuação me afetou. — Vai trabalhar.
       O ouço rir quando a música começa em meu ouvido.
       Oito horas e cinquenta minutos depois, e duas refeições, um filme, várias idas ao banheiro para levar Mikey, nós aterrissamos.
        Como o esperado Mikey dormiu e nada o acorda, Landon desembarca com ele no colo e eu tenho que pegar as duas malas na esteira e colocá-las em um carrinho.
       — Essa é a vida com crianças. — Landon ri me vendo exausta depois de lutar para me esticar e alcançar a mala.
       — É por isso que pais são meio super-heróis, não todos.
       Caminho ao lado dele deixando a área de bagagens, as portas automáticas se abre e eu empurro o carrinho por elas.
       — Vai trabalhar amanhã ou pedir folga? — Landon me pergunta falando baixo por causa de Mikey.
       — Trabalhar. Por incrível que pareça gosto de trabalhar.
       — Posso te buscar no almoço? Precisamos conversar.
      Coloco um pouco mais de força e velocidade para empurrar o carrinho. — Não, não precisamos. Se for pelo que estou imaginando.
       O braço livre dele puxa meu braço do carrinho me forçando a parar.
       — Então vamos deixar as coisas estranhas? Se não se lembra várias coisas poderiam ter sido evitadas se nós tivéssemos sido honestos com tudo, entre nós e com outras pessoas.
        Puxo meu braço da mão dele e dou um sorriso defensivo. — Está falando sobre você mesmo, certo? Acho que tem experiência no assunto.
        — Eu? Quando nós viajamos você lembra dos últimos dias, você não verbalizava como estava se sentindo. E podemos falar sobre aquele Natal, porque você inventou uma mentira e saiu correndo. — O tom de voz dele sobe um pouco. — O que vai ser agora? Eu estou querendo conversar para entendermos isso, mas se vai agir como quando tinha dezoito anos tudo bem.
       Ele está insinuando que sou imatura? Eu não sou imatura por estar tentando não tornar a situação algo que ninguém precisa lidar nesse momento.
        — Acabou? Espero que sim porque não vou entrar em uma discussão. — Coloco as mãos de volta no carrinho.
       Assim que olho para frente para o empurrar vejo meus pais vindo em nossa direção. Por sorte não pegaram nosso pequeno desentendimento.
       — Tudo bem por aqui? — Meu pai pergunta.
       Ou talvez tenham visto.

       
      
       

Todas as batidas imperfeitasOnde histórias criam vida. Descubra agora