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       — Estou saindo. Juízo. — Recebo um beijo na testa do meu pai.
       Ele vai para uma convenção, em Washington e só volta na quarta, então vamos ser só eu e Charlie hoje e amanhã. Papai e ele se conheceram, acho que se deram bem, para duas pessoas que não tem nada a ver.
        Também tem aquele adicional estranho de apresentar os dois depois de Charlie acordar no meu quarto sem meu pai saber. Isso nunca aconteceria até anos atrás, as regras eram rígidas, e para ser honesta acho que isso nunca aconteceria até mesmo atualmente, se mamãe estivesse em casa.
       — Cuidado hoje a noite. — Papai acrescenta antes de ir para o carro.
       Hoje a noite! Charlie conhece alguém, que conhece outro alguém, que conhece o dono de uma casa noturna e eu vou tocar hoje. Estou animada e em pânico de fazer isso depois de alguns meses. E ele trouxe minha mesa de mixagem com ele.
       Volto para o quarto e Charlie já apagou de novo na cama então só pego meu notebook para olhar minhas pastas de remixes pré produzidos e de efeitos. Coloco meus fones e começo a ouvir apenas porque quero entrar no clima desde já.
       É incrível como isso funciona, é como se eu virasse uma chavinha no meu cérebro. Durante o resto do dia eu ouço música eletrônica no último volume, alternando entre dançar, beijar Charlie e beber um pouco, não muito porque quero estar sóbria quando tocar essa noite.
       — Você está gostosa. — Charlie me abraça por trás quando termino de arrumar a noite. — Eu gosto quando se maqueia e se veste assim, parece muito poderosa.
       Dou um sorriso virando meu rosto para ele. Entendo o que ele quer dizer, também me sinto poderosa.
       Vou até o espelho me observando, meus olhos verdes contornados por delineador preto parecem ainda mais destacados. E não estou usando nada demais, uma camiseta que parece vestido, ou vice-versa, e meias preta acima dos joelhos. Mas ainda assim eu me sinto invencível quando estou prestes a tocar, me sinto em outra realidade.
        — Que horas eu toco mesmo? — Pergunto a Charlie enquanto olho a última mensagem de Landon no meu celular.
        Ele está perguntando se já saí e me dizendo para me divertir muito e aproveitar a noite. Eu quase disse a ele para vir também e encontrar alguém para cuidar de Mikey, mas então eu pensei que é muito cedo.
       — Meia noite. — Charlie me responde enquanto está enrolando um cigarro.
       Ainda faltam quase duas horas. Vou para minha cama segurando o celular para responder Landon sobre não ter saído ainda. Depois que faço isso olho a mensagem que minha mãe mandou essa tarde, é a primeira mensagem que recebo delas em muitos anos. Não é nada demais, eles usam pouco o celular na clínica, a mensagem tem apenas duas frases.

Como vocês estão? Mikey e você estão bem?

        Não sei bem como me sentir em relação a isso. Ela não está dizendo nada amoroso, mas a jovem carente de carinho materno que habita dentro de mim quer que signifique algo, que ela ter gasto um minuto para me mandar mensagem tenha importância para ela como tem para mim. E são essas expectativas que estão me impedindo de a responder, eu quero parecer feliz por ela me escrever e também aberta para que ela faça isso mais vezes. Só não sei com que palavras fazer isso.
        — Tire essa expressão do rosto, eu providenciei isso para você se divertir. — Charlie se senta ao pé da cama depois de acender o cigarro.
        A presença dele aqui é com esse objetivo, me deixar feliz, e eu estou, mas não posso apagar o resto do mundo, não mais. Pelos últimos anos eu agi como se fosse sozinha no mundo, agora não é mais assim.
         — Confia em mim, ninguém vai se divertir mais do que eu essa noite. — Garanto a ele. — Deixa só eu colocar minhas mãos naquela mesa de mixagem.
        — Eu confio. — Ele traga e se inclina sobre mim soltando a fumaça em meus lábios. — Mas se precisar de ajuda para relaxar eu tenho.
        Sim, álcool, maconha e outras coisas mais pesadas, Charlie adora consumir essas coisas quando sai, e sem julgamentos, eu também já fiz isso, várias vezes.
         — Vou ficar apenas chapada de música hoje. — Sorrio e seguro a camisa dele o puxando para o fazer me beijar.
        Pouco depois das onze estamos entrando na casa. Alguém coloca um copo na minha mão enquanto Jenz, o dono, se apresenta e diz que me ouviu tocar no palco menor da Tomorrowland ano passado. É um dia inesquecível, foi perfeito.
         — Se for ficar em Chicago talvez devesse tocar por aqui, você é muito boa. — Jenz sugere segurando em meu ombro me guiando para um sofá.
        O camarote que estamos é muito exclusivo, tem só alguns convidados, Charlie está o tempo todo ao meu lado. Eu poderia estranhar pessoas desconhecidas me arrastando, mas esse é meu mundo, eu aprendi a viver na noite.
         — Se eu ficar e for continuar como DJ eu aviso. — Falo por cima da música me aproximando de Jenz para ele ouvir. — Há quanto tempo a casa está aberta? Não me lembro de ouvir falar dela enquanto eu ainda estava aqui.
         Ele ergue três dedos. — Pouco, mas pode perguntar a qualquer um, é a mais prestigiada de Chicago.
        Isso é o que sempre dizem, mas dessa vez eu até posso acreditar, pela fila lá fora, mas o público de dentro não fazendo nenhuma superlotação, eu deduzo que estar aqui dentro é algo disputado.
         — Quer mais bebida? — Charlie me pergunta se levantando. — Gin tônica?
         — Me conhece bem. — Seguro o braço dele. — Não some, por favor.
         Ele pisca para mim e assente. Não é que eu não esteja acostumada a ficar sozinha assim, mas estou um pouco insegura hoje, preciso de apoio.
         — Você começou a tocar nas festas de Oxford, não foi?
        Me viro de volta para dar atenção a Jenz e assinto respondendo a pergunta que ele fez.
         — Então começou a tocar pela diversão das festas. — Ele brinca.
         O comentário me faz pensar no meu começo como DJ, quando comecei a usar a mesa que Landon me deixou. — Na verdade eu comecei por amor.
         — A música?
         Rio negando com a cabeça. — Não, amor a um cara.
         Essa é a verdade, naquela época de alguma forma isso me fez sentir ligada a Landon de alguma forma, era um pouco como preencher o vazio que ficou depois das nossas semanas juntos.
          — Um brinde a ele então, por ter despertado um talento. — Jenz ergue o copo dele e eu ergo meu copo com o restinho do coquetel com vodca que estou bebendo. — Caso o cara tenha ficado para trás podemos ir para o meu apartamento depois daqui, talvez tocar em particular.
         Charlie está voltando com nossas bebidas e eu olho para ele sorrindo agradecida por ele estar de volta. — Estou com Charlie, mas obrigada pelo convite.
         Depois de dizer isso a Jenz me levanto e pego meu copo de Gin tônica da mão de Charlie e o agradeço com um selinho.
        Não é a primeira vez que um contratante me faz uma proposta para ir para a cama dele, na verdade é muito comum sendo uma mulher em um meio com maioria masculina. É uma droga, mas eu me acostumei. Infelizmente, a gente se acostuma.
        — Preciso de uma garrafa de vodca do meu lado enquanto tocar. — Digo a Charlie parando para beber um pouco. — Já checou se a mesa está bem montada? Conectou meu notebook? Não deixe ninguém mexer nele e nem na mesa, nem nos meus fones, principalmente nos fones.
          Sim, eu sou ciumenta com meu equipamento de som.
        — Vou lá olhar tudo, quando foi que não deixei tudo certo para você?
        — Nunca. É que estou ansiosa. — Admito e coloco uma mão no ombro dele. — Me ajude a relaxar antes de ir checar tudo.
        Aproximo meu corpo do dele me movendo dançando enquanto bebo meu coquetel. Ele se move também e abraça meu corpo dando um beijo demorado em meu pescoço.
        Quando subo no palco com os fones em meu pescoço e olhando para a casa agora mais cheia do que antes eu sinto um pequeno frio na barriga. Mas só dura um instante porque me lembro que eu consigo deixar o público na minha mão se quiser, e eu quero.
         — Espero que estejam prontos porque nós vamos ficar insanos juntos essa noite! — Falo no microfone. — Então me digam, estão prontos?!
         A gritaria explode de todas as direções e isso me faz sorrir. Eu amo essa energia. Solto a primeira música e ajeito os fones no meu ouvido, está na hora.
         Eu amo ver como cada pessoa sente as batidas, como os corpos reagem, eu gosto de pessoas que sentem, dá para ver em suas expressões. Tem outras pessoas que são só genéricas, elas não sentem a música, eu não gosto dessas.
         Preciso daquela expectativa nos olhos das pessoas quando a música está em looping e preciso mais ainda daquela explosão depois dele. Fazer isso por quase duas horas me enche de adrenalina.
         Eu pulo, danço, grito, bebo uma garrafa toda sozinha, eu me divirto ao máximo. A sensação é incrível, é como ser despertada depois de meses. Quero mais quando termino e vou elétrica para os braços de Charlie o beijando agradecida.
         Assim que nossas linguas se entrelaçam sinto algo escorregando entre elas e me afasto olhando para a boca dele. — O que é isso?
         Ele dá um sorriso torto. — Doce. Quer?
         — Vai fazer eu me sentir assim por mais tempo? Porque porra eu não quero deixar isso ir embora, eu preciso ficar feliz assim. — Estou sorrindo como boba. É libertador.
         — Abra a boca para o doce Livvy, vai gostar da viagem que ele vai te levar.
         Abro a boca e deixo Charlie colocar a cápsula em minha língua porque confio nele para estar ao meu lado. O resto da noite logo se torna um borrão, uma mistura de euforia, cores vibrantes que mudam de acordo com a música tocada. É como se a música praticamente me abraçasse, e depois eu nem lembro de muita coisa.
        Só de dançar loucamente, de não querer ir embora, de ficar louca para transar. E então de repente não é mais tão legal porque meu coração está disparado quando me torno consciente de que estou deitada nua em minha cama e Charlie está dormindo no chão.
       Meu estômago se contorce de repente e eu descubro que preciso vomitar então saio da cama o mais rápido que consigo.

Todas as batidas imperfeitasOnde histórias criam vida. Descubra agora