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       Tem alguns momentos que sabemos que são importantes antes mesmo de passarmos por eles. Quando desço do carro e entro pela porta do hospital um dia depois do que aconteceu com a minha mãe eu sei que vou viver um momento importante.
        Ela vai receber alta em algumas horas, talvez essa noite ou pela manhã, e a gente precisa definir o que vai acontecer a partir de amanhã. E se nada acontecer eu seriamente acredito que pegarei o primeiro avião para Londres e parar de achar que posso ajudar alguém.
         Eu não tenha ajudado nem a mim mesma nos últimos anos, talvez eu só não seja boa nisso.
        Mamãe está sozinha quando entro no quarto, ela está com a televisão ligada prestando atenção no noticiário local. Dou uma batida curta na porta mesmo que ela esteja aberta.
         — Posso entrar?
         Quando ela se vira não recebo o olhar habitual de raiva dela, é algo mais vazio. E não sei se esse é pior do que o outro.
          — Vou ter alta amanhã, não precisava vir. — Ela desvia o olhar. — Íamos nos ver em casa.
         Assinto entrando no quarto olhando para a televisão para também evitar a olhar. — Eu sei, talvez eu te visse, mas não vim te ver, vim conversar e em casa você fugiria disso.
         Ela fica em silêncio e eu resisto a minha vontade de a olhar. Ao invés disso respiro fundo e volto a falar. — Eu preciso que nos avise se desistiu de viver, porque nenhum de nós pode ficar só esperando que algum dia vá querer viver de novo.
         — Você não pode cobrar isso de uma mãe que perdeu uma filha.
        Me viro para ela a vendo encarar uma das paredes do quarto. Ela também não quer me olhar, mas acho que é necessário então vou até a cama e me sento em uma beirada.
         — Eu não sei o que é para você passar por isso, e espero nunca saber, mas outras mães passaram por isso, muitas perderam seus filhos muito cedo. Acredito que todas elas tiveram que decidir se desistiram da vida ou se iriam tentar continuar. — A vejo fechar os olhos um instante e respirar fundo, ela continua a não me olhar. — Você não tem tentado em quase três meses, por isso estou aqui, quero saber se pretende tentar.
          Odeio a forma como meu coração está acelerado enquanto falo com ela. Não é o acelerado a que estou acostumada quando toco e a música invade meus ouvidos, aquele é bom, esse de agora é doloroso.
          — O que é tentar? Fingir que nada aconteceu? Se enfiar no trabalho durante a semana e no clube de golf aos fins de semana? Ou conseguir um emprego e estar de volta a cidade e brincar de ter uma vida nova? Ou se mudar para uma nova casa e começar uma nova vida?
         Ela nos culpa por continuarmos nossas vidas e isso não é novidade. Mas isso não é errado, é?
         — Talvez pareça egoísta continuarmos a viver, mas é necessário. Você pode julgar como estamos fazendo, mas cada um de nós está tentando, ao contrário de você. — Eu a acuso também. — Sarah tinha medo de você sufocar Mikey demais, de controlar demais, mas ela não devia ter se preocupado porque você desistiu dele também. Desistiu de estar bem ao lado dele, você está dopada de calmantes a maior parte das vezes que ele está em casa. Sabia que Landon vai ver uma escola essa semana e queria que você fosse junto?
          Mamãe finalmente me olha e eu aperto os dedos no lençol da cama. Algo no olhar dela sempre me faz sentir a menina de doze anos pega roubando maquiagens da irmã.
           — A dor Olivia, ela é grande demais, eu olho para aquele garoto e vejo Sarah, e então olho para você e vejo Sarah. Preciso de todos esses calmantes para não sentir nada.
           Ela vê Sarah em mim? Eu não tenho nada de Sarah, ou pelo menos eu nunca percebi isso.
          — Acredite eu sei como é não querer sentir. Como acha que foi para mim perder minha família? E a primeira que perdi foi você, muito antes de eu deixar Chicago pela última vez. — Mordo meu lábio tentando não pensar demais no passado. — Eu estava quase sozinha em Londres, eu me joguei em cada oportunidade de tocar e encher minha cabeça de música, meu corpo de bebidas e coisas piores. Eu só queria não pensar em nada. E para onde isso me trouxe? De volta ao começo. Você nunca vai sair do lugar se ficar só tentando esquecer e principalmente se achar que tem que fazer isso sozinha. Nós também perdemos Sarah, o papai perdeu e vocês nem mesmo falam sobre isso.
         — Eu não sinto que ele queira ter essa conversa.
         Quando ela fala isso pela primeira vez eu percebo que ela quer falar, mas eu não sei se ela sabe com quem ou como falar.
          — Você fala que ficou sozinha, mas e quanto a mim? Seu pai sempre preferiu o trabalho, e eu e você não temos conexão nenhuma, Olivia, eu parei de tentar ter há muito tempo.
          — Sim, quando eu era praticamente uma criança. — Meu tom de voz se altera, ela chegou no meu ponto mais sensível. — Eu não era nada do que você queria em uma filha e então você desistiu de mim, e eu só era boa quando me parecia com Sarah, porque a imitava para fazer as pessoas gostarem de mim, você principalmente.
        Eu me levanto da cama e fico de pé no meio do quarto a olhando. — Eu senti falta de uma mãe. E sinto falta de uma mãe agora também, porque minha irmã se foi e eu e minha mãe nem nos abraçamos e choramos por ela.
        — Você não tentou se aproximar.
        — Você não deu abertura! — Meus olhos lacrimejam quando grito.
        Não vou deixar ela colocar essa culpa sobre mim, ela se fechou, e fez isso muito antes da morte de Sarah.
         — Eu sei que não se importa em me perder, mas se continuar assim vai me perder para sempre, e perder o papai, perder o Michael. E sozinha não é um bom lugar para se estar. — Tem um pouco de raiva em minha voz, um pouco de medo, um pouco de tristeza. — Então pense se quer ficar sozinha ou se quer seguir em frente com pessoas ao seu lado. E você não precisa começar conosco imediatamente, tem pessoas que sabem melhor como ajudar com a sua dor, clinicas de repouso onde pode descansar e aprender a lidar.
          — Vocês querem que eu me interne? Tudo isso é sobre se livrar de mim?
          Por que ela sempre tem que ter essa expressão de quem está na defensiva? Ela nunca abaixa a guarda, é exaustivo.
          — Tudo isso é sobre você aceitar que está viciada em calmantes, que não quer passar pelo luto e procurar ajuda. — Tento deixar claro. — Eu sugeri a clínica porque talvez uns dias longe e com outras pessoas que entendam seja melhor, mas pode se cuidar em casa, fazer acompanhamento. Só precisa fazer algo. Quando sair desse hospital amanhã precisa saber o que quer, precisa decidir se desistiu da vida, porque se essa for sua decisão eu estou lavando minhas mãos e em breve papai fará o mesmo. É sua escolha.
          A cabeça dela se move assentindo muito de leve, é um movimento quase imperceptível, mas eu noto. Então ela para de me olhar de novo e olha a televisão.
         — Quer dizer mais alguma coisa? — Ela é distante, como sempre.
        Não que eu esperasse que fosse surtir efeito repentinamente, mas se fizer ela refletir já terá servido para algo.
         — Não, era só isso. — Tento imitar a frieza dela. — A gente se vê em casa amanhã.
        Era óbvio que não ia ser uma conversa emotiva, com abraços, choro e perdão. Mas é estranho que lá no fundo eu quisesse isso? Talvez seja por isso que meus olhos estão marejados de lágrimas quando caminho para sair do hospital. Mas passo as mãos sobre o rosto e respiro fundo antes mesmo de chegar ao carro.
        Jordan está esperando. Eu só quero dirigir, ir para algum lugar sem ninguém me acompanhando. O
        — Para casa, senhorita Olivia?
        Eu não sei. Ir para casa ficar sozinha, sem ninguém para conversar, ou não ir?
        Deixo Jordan abrir a porta para mim, mas paro antes de entrar no carro e olho meu celular para ver que horas são. — Nós vamos para outro lugar.
         Entro e deixo para dizer aonde vamos quando estou acomodada. Vinte minutos mais tarde estamos estacionando na frente da casa de Landon e Mikey.
          — Jordan, eu ligo quando puder me buscar. Obrigada. — Empurro a porta, mas não saio até terminar de falar. — E antes que insista, não, não precisa esperar.
         Ele ri. — Certo, mas me ligue.
         Assinto e desço do carro indo direto para a porta da frente, tocando a campainha. Não sei exatamente porque estou aqui, acho que preciso ver Mikey e lembrar que vale a pena estar aqui. Ele é a melhor parte.
         Quando a porta se abre Landon franze a testa, ele me encara e então sem me perguntar nada estica a mão para mim. E eu ergo a mão para ele, só que eu não devia ter feito isso porque algo dentro de mim se rompe e em um segundo eu estou chorando. Chorando muito.
          Eu já chorei por Sarah nas primeiras semanas, mas eu fiz isso sozinha no meu quarto, ou enquanto eu bebia. Eu quis estar lá quando as pessoas choraram, porém não deixei ninguém estar lá comigo. Só que agora eu preciso que alguém esteja.
           — Vem cá. — Landon me abraça e fecha a porta.
           Estou com o rosto contra a camisa dele soluçando enquanto lágrimas caem. — Desculpe, eu não q...
          — Shhh. Você precisa disso, pode chorar.
          A permissão dele solta a última amarra de controle emocional que eu tinha. Nós dois ficamos em silêncio o resto do tempo que eu choro. Dura longos minutos antes que eu me acalme e me solte dele.
           Eu talvez devesse me sentir sem jeito de vir aqui a casa dele chorar, mas eu não sinto vergonha. Landon é o mais perto de um amigo que tenho aqui, e se eu puxar pela memória, lembro que um dia, em uum passado mais ou menos distante, eu me sentia tão a vontade de conversar com ele.
          — Mikey dormiu antes de jantar, mas deve acordar daqui uma hora, eu acho. — Ele diz, para o meu alívio ele não parece disposto a render minha crise de choro. — Eu estava dando uma escutada em uma mixagem, um amigo de Londres me pede umas dicas as vezes. Quer opinar?
          Eu me sento no sofá e ele aponta o notebook em cima da mesa junto com o fone de ouvido.
          Então ele não deixou de amar a batida eletrônica esse tempo todo, não é? Deve fazer bem a ele, como faz para mim.
           — Não sou tão boa quanto você, mas posso opinar.
           Landon já foi até a mesa pegar o notebook. — Eu escutei suas mixagens, você é ótima.
          Movo a cabeça negando enquanto ele caminha para o sofá trazendo o que precisa.
          — A música é ou era sua paixão, seu amor a primeira vista, lembra? Para mim sempre foi só uma fuga.
          Os fones de ouvido grandes são colocados em meu ouvido sem autorização. — Então fuja um pouco, Ollie.
         E eu fujo mesmo quando o som invade meus ouvidos. Sou grata por ele me dar um pouco disso.
         
        
       

Todas as batidas imperfeitasOnde histórias criam vida. Descubra agora