"Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em verdade." 1 João 3: 17-18
As caniplas são belas aranhas de cristal, nativas das cavernas da Primavera de Cristal, onde tecem esculturas de cristal que refletem a luz das chamas superiores. Chama esta que um dia as consome, transformando cristal em fogo, e imaginação em realidade, as levando para a Dimensão do Fogo, de onde a magia veio.
Há muita sorte para os seres que vislumbram uma de suas esculturas-teias. As aranhas encontram - com seus oito olhos - caminhos ocultos sob a terra que as levam ao Plano Cavernoso, um labirinto de túneis capaz de deixá-las em qualquer plano do Omniverso para espalhar suas obras sem fim.
A maioria das nossas boas ideias são formuladas nos sonhos, mas apenas as aranhas melhor as retém ao acordar, pois o fogo é quente em seus cérebros pequenos e precisos. Dizem que antes de conhecerem as obras das aranhas, os emplumados tengus sonhavam com suas corridas no céu, mas não se lembravam das ideias ao abrir os olhos pela manhã, e desejavam o céu sem pensar em abrir as asas. Do que mais somos capazes de fazer, mas nos esquecemos?
Nem os dentes do Dragão de Ferro do Vale Karfrum podem partir suas teias, pois cada osso de ferro e aço do dragão seria estilhaçado. Quando capturam algo para se alimentar, nem o mais veloz kraken se solta da jaula de diamantes que uma aranha tece em segundos.
Costumam também dar boas ideias para os habitantes dos Planos por onde passam, exalando um feromônio criativo. Muitas maravilhas foram feitas com a inspiração delas, embora pouco se tenha ouvido falar nesta distinta espécie.
São incapazes de mentir, pois são transparentes como cristal, afiadas como aço, e íntegras como montanhas.
Seus corpos são formados por dois cristais: um principal na maior parte do corpo, outro para as pontas das patas, pedipalpos e cabeça, e não havia duas com a mesma combinação de cristais, e a cada mil anos surgia uma aranha com uma parte de cristal diferente nunca antes registrado nos anais da Primavera.
Quem encontrar um dos diamantes perdidos que caem de suas costas, e comê-lo, se tornará uma canipla. Ele ouvirá o chamado do fogo para as cavernas e os Planos além delas, para a corte das caniplas, onde o Rei-Gema e a Rainha Cristal lhes dão um título único de nobreza, e seus irmãos e irmãs o reconhecem como igual em uma festa farta de muitas frutas, peixes e carnes. Mas é quase impossível que uma canipla surja assim, pois os diamantes duram poucos dias comestíveis, antes de se tornarem pedras de cristal, e perderem a maior parte da magia. E, como é dito, para cada cem mil diamantes de um mundo, três vieram de uma aranha canipla, e apenas um ainda pode ser comido.
Nasem de ovos semelhantes à geodos, e são cuidados por suas mães, que se tornam maiores e mais fortes para cuidar dos filhotes, e continuam assim pelo resto da vida, honradas, e jamais seus esquecidas pelos filhotes, que guardam os nomes de suas mães de dezenas de gerações passadas.
Sábias artistas, suas mentes de diamante são seduzidas pela beleza, inspiradas por ela como uma chama na madeira. Curiosas, ousadas, e livres, os olhos cintilantes de iridescente opala lustrosa, em alguns negra, em outros branca.
Mas, a tristeza da ignorância e a feiura trágica também as inspirou, quando algumas delas pisaram em Niren, o plano dos lobisomens, onde as selvas não têm fim e a lua cheia nunca se põe na noite estrelada dos coros de uivos.
Havia cinzas em suas matas queimadas, e sangue pela terra entre os escombros carbonizados dos palácios e mansões de madeira dos lobisomens. Uma ataque viera, do Caos Vivo que se alastra como um incêndio do coração das Orbes da Agonia. As aranhas se abraçaram diante daquela visão, e suas lágrimas eram grãos de safira. Elas sabiam o que era ver seus filhotes devorados pelo Caos Vivo, e o horror que as mentes deles se tornavam quando eram separadas dos corpos e transformadas em maldição encarnada.
Por isso, centenas de caniplas foram para Niren tecer a mais bela das esculturas, para que os corações feridos dos lobos sobreviventes fossem inspirados a recomeçar e continuar suas caçadas sob a lua.
Então, quando a lua de Niren soprou seu canto radiante sobre as caniplas, ele foi refratado em arco-íris diversos e fabulosos pelas aranhas de cristal, maiores que cavalos. Mas aquilo não vinha delas, caniplas, como aranhas, não gostam de se exibir. Era o fogo que sorria para os lobos.
Mas uma loba, líder de um grupo de lobas maliciosas que treinava os mais jovens para serem fracos de mente, se curvando aos caprichos irracionais do partido, não gostou da presença das aranhas. Não querendo uma ameaça ao seu poder, a loba conversou com as suas subordinadas, temendo o calor que vinha das mentes das aranhas.
Assim, com latidos e rosnados, a lobisomem as mandou embora para brincar com os hipopótamos, em referência ao fato curioso de que as caniplas são apaixonadas pelos filhotes de hipopótamos, e sempre ficam encantadas quando os encontram em algum plano com rios, passando horas brincando com suas travessuras.
Entristecidas, as aranhas regressaram por uma caverna para a Caverna Infinita, que as deixou na Primavera de Cristal, onde novamente se alegraram na presença de seus amigos e de seus palácios-galerias. Palácios estes, tão vastos que ocupam vales e cobrem montanhas como lençóis de teias oceânicas brilhando em mais cores que o arco-íris. Lá estão as esculturas que as aranhas não mostram a ninguém, que jamais saem da Primavera de Cristal. Obras do tempo das avós das avós, antigas desde os dias das primeiras gerações de aranhas, teias elegantes que sussurram os dias e noites do porvir, para cada Plano do Omniverso. Algumas enlouquecem pelo conhecimento, em outras crescem majestosas armaduras de cristal no corpo.
As caniplas que retornaram logo esqueceram-se dos lobos, os deixando à própria sorte com suas líderes, sem saber que o dia da sua transformação em fogo vivo era, por este motivo, adiado.
Os reis e rainhas, apenas observavam, cientes do futuro, curiosos pelo que suas caniplas fariam. Possuíam, como nobres, corpos humanoides, mas eram caniplas da cintura para baixo. Menores em poder criativo, porém maiores em estratégia, organização e liderança, e assistiam com cautela.
Elas querem espalhar boas ideias, mas se calam quando expulsas, e têm o direito de negar ajuda aos que a rejeitaram. Mas, ainda assim, o fogo é poderoso nas caniplas, e mais radiante em algumas que em outras. Aconteceu de algumas não se esquecerem da triste situação dos lobos, e permaneceram reclusas em suas tocas tecendo uma escultura como nenhuma outra já feita, pois fora para espalhar a luz do fogo da magia que os deuses as esculpiram antes da criação dos planos, e a Mediocridade, a Desistência e Intimidação são inimigos de deuses, aranhas e homens, e muitos são os nomes para o fogo que os liberta e transforma.
Sua obra prima foi levada para Niren duzentos e vinte e dois anos depois, concluída. Uma nova destruição havia passado, e com ela, as lobas que a chamaram também foram destruídas, pois algumas coisas apenas o fogo pode destruir. Os anciãos dos lobos aceitaram o presente das aranhas com gratidão, oferecendo muita lã de ovelha, nozes e manufaturados rudimentares de madeira. E a luz da magia os fez destravar os poderes perdidos de seus ancestrais, quando a lua, pela primeira vez em eons, passou a variar de fase.
Assim as caniplas retornaram, gratas pelas chamas que as inspiraram, e se deixaram por elas ser consumidas, e retornar à fonte de sua imaginação, subindo aos céus além dos céus d'além dos Planos como um cometa de diamante com cauda de opalas, gargalhando um som que os lobisomens não identificaram mas era como as trombetas do nascer de um sol.
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ALGUMAS PALAVRASEu amo aranhas.
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Fragmentos de Ecos Esquecidos
Short StoryColetânea de cenas e contos de fantasia, ficção científica, horror e outras quase-realidades que recebi a graça de conhecer.