A Escolha de Klarion

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"São nossas escolhas que revelam quem somos, bem mais que nossas habilidades."

J. K. Rowling

As escadas pareciam descer ao coração do vazio, e eu alisei a juba de meu leão, embora fossem as minhas pernas que tremessem.

Esporos pairavam como estrelas solitárias, um verde como os olhos de Lamila que ascendeu uma vela no meu coração, embora a umidade gélida fosse como se entrasse em uma tumba, e meus passos ecoassem com um som diferente do que fora enviado, mais parecido com notas de um coro do que passos sobre rocha úmida.

Os fungos vestiam as paredes sombrias, as adornando com musgo poroso, trepadeiras retorcidas e parasitas rugosos, temperando o ar com a alma de uma natureza selvagem, bela e letal. Até Ralon parecia deslocado e ansioso. Não havia animal no templo, apenas cogumelos brotando de poças negras nos degraus, saindo das paredes ou alguns gigantes, banhados pelos esporos nas sombras, em torno da escada como se fossem o topo de montanhas venenosas cor de mofo se elevando de um abismo mais profundo que o Hades. Eram tão lisos, alienígenas e intocados, seja pela natureza ou pelo homem, que um arrepio me serpenteou, e acelerei o passo com meu leão.

Na base da escada, soltei o ar. Parecia ter encontrado o dia com a luz de tantos esporos no teto distante, e meus músculos relaxaram como uma folha ao vento.

O ar cheirava à mofo e lápides de um cemitério de igreja. Era uma sala oval, com fungos multiformes pintando imagens nas paredes, cenas épicas de anjos de toga, esqueletos de armadura, e fantasmas com lanças em um baile que lembrava um velório em uma catedral.

Duas coisas ocupavam a sala: uma mesa de rocha vestida de bolor, e o Guardião.

O leão rosnou para o Guardião, que fez um sinal com a mão, como um bispo do xadrez, e o animal sentou e bocejou.

O Guardião usava trajes decorados de sacerdote, mas era feito de fungos cor de mato e pergaminho ao invés de tecido, e seu cajado tinha cogumelos no topo que pulsavam como um coração, entoando uma luz que fazia os olhos ouvirem o som de um sorriso encharcado de lágrimas. Foi o que vi. 

O rosto do Guardião era enrugado e pálido, com veias turquesa, um sorriso de avô e olhos de viúva. Sua barba parecia madeira podre abrigando uma safra cogumelos que balançavam por um vento ausente.

- Abençoado seja, Klarion, filho de Klaranat. - a voz do Guardião parecia vir de uma catacumba profunda ao invés de uma garganta - Abençoado seja pantera Ralon, príncipe do Clã da Pedra Molhada. 

Encarei meu leão com uma sobrancelha inquisidora. Ralon nunca me contara que era um príncipe, afinal animais não falam.

- Salve, Guardião do Templo Profundo - fiz a reverência que aprendi com as fadas. - Vim em busca da arma campeã, em nome dos elfos e dos homens, dos anões e das fadas, pelos orcs e pelos lobisomens, e todas as terras do mundo dos vivos onde o sol toca indolente e os fragmentos da lua choram impiedosos.

Ralon grunhiu um rugido breve, lento e gutural.

O Guardião coçou a barba crocante e seu cajado expandiu e retraiu sua luz em um coração lamentoso, me deixando desconfortável.

- Uma escolha você fará, e hoje a morte virá - o Guardião proferiu sem separar seu sorriso sábio dos olhos ancestrais. Suas palavras cheiravam à bibliotecas e coleções antiquadas, e seu tom suave  e agourento apertou o meu peito.

Me aproximei da superfície rugosa e adoentada, e três armas cresceram rápidas como fungos na podridão, mas sua visão martelou meus olhos, e dei três passos para trás.

Nunca tinha visto Ralon sem ousadia nos olhos e isso o abalou ainda mais. 

Aquelas armas não foram forjadas por mãos humanas, nem por metais humanos, nem dentro dos limites de onde homem algum já alcançou, seja em corpo, seja em sonho, seja em mito. Uma visão e conhecimento quase instintivo que assaltou minha alma, como quando toquei na mão de Lamila pela primeira vez, ou quando ouço as batalhas dos trovões.

- Seja forte, e escolha - O Guardião declamou, fazendo um sinal que pareceu quebrar a casca de meu coração.

Cogumelos cantaram, e fui com meu leão para a mesa embolorada.

Minhas mãos queriam tocar a Alabarda de Ouro como uma língua diante de uma comida cheirosa. Seu cabo longo tinha entalhes tão detalhados quanto um vestido de rainha, saborosos ao toque intrincado.

Ao contemplar a lâmina decorada, me senti um rei com um espelho de ouro segurado por seus servos leais. Alguém com montanhas de joias e moedas em seus cofres, sendo reverenciado, temido e desejado por todos.

Quando a testei no ar meu corpo dançou gracioso como um pavão, o ar vibrando como aplausos de milhares de súditos, um cheiro de tecidos, especiarias, incensos e fragrâncias afrodisíacas de dançarinas do oriente.

Até podia ouvir a multidão ecoando meu nome com deleite pelas ruas.

Mostrei à Ralon mas ele apenas fungou. Devolvi à mesa com saudade e peguei o Sabre de Prata.

A lâmina era da cor de uma nuvem de chuva, suave como pele de mulher, as laterais afiadas como se feitas de uma fileira de agulhas coladas.

Poucos ornamentos humildes como marcas de uma palma. Não cheirava á ferrugem ou sangue, era algo seco e denso como o inverno.

Lamentou ao cortar o ar, como se se arrependesse de algo. O temperou com o sabor de um rio congelado em um bosque sombrio.

Minha respiração falhou quando me peguei pensando na primeira vez que matei um pássaro ferido com uma vareta, não foi pela fome ou segurança, apenas a curiosidade mórbida de algumas crianças.

O devolvi a mesa com algo gelado apertando o peito, e me virei para a terceira e última arma.

Eu tive medo de tocar o Machado de Ferro, mas Ralon o olhava com olhos grandes brilhando vermelho. Era a arma mais pesada, como se a substância que fingia ser ferro tivesse vindo de todas as lâminas ensanguentadas de um campo de batalha mítico, até seu cheiro era de sangue coagulado, um gosto metálico e pesado brotando em minha boca.

O metal era rugoso e desgastado como se fosse mais velho que Caim.

Meus músculos gostaram da sensação de descer a cabeça pesada fatiando o ar, e pensei em como queria matar o assassino de Lamila. Um pastor fraco e desarmado havia perdido, mas um guerreiro com um machado poderoso, o herói da Quinta Profecia, não seria parado. A cada golpe que dei no ar, senti a destruição que apenas os deuses podem causar sobre os demônios, e meu coração esquentou apimentado ao imaginar meus inimigos aniquilados aos meus pés, seu sangue em meu rosto, seus gritos agonizantes me nutrindo como adrenalina.

A devolvi a mesa com uma sombra de raiva, e pensei com meu leão antes de decidir. Toda a vida que ainda restava no mundo dependeria sua esperança da minha próxima escolha.

...

O Guardião sorriu e abençoou Klarion, que subiu as escadas de volta ao mundo da luz. Tinha o caminhar erguido de um rei, e seu silêncio era uma promessa de guerra que jamais seria descumprida. As estrelas no coração do mundo brilharam mais fortes como uma nota alta de um corvo, e o Guardião abraçou seu cajado, os cogumelos pulsando sobre o coração que há muito partira, um gosto doce na língua, e riu alto enquanto fungos parasitas cresceram como filhos em torno dele. Seus trajes de sacerdote o abraçaram mais forte, suaves como beijos, perfumados como uma flor do pântano perdido. Sua pele foi secando como a saudade ao rever um amigo, ou o medo da noite quando o pesadelo se torna sonho no macio leito de uma criança.

E as estrelas se apagaram.

"Por isso Deus lhe disse: Já que você pediu isto e não uma vida longa nem riqueza, nem pediu a morte dos seus inimigos, mas discernimento para ministrar a justiça, farei o que você pediu. Eu lhe darei um coração sábio e capaz de discernir, de modo que nunca houve nem haverá ninguém como você. Também lhe darei o que você não pediu: riquezas e fama; de forma que não haverá rei igual a você durante toda a sua vida."

1 Reis 3:10-13

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