"Eu o instruirei e o ensinarei no caminho que você deve seguir; eu o aconselharei e cuidarei de você." Salmo 32:8
Todas as questões importantes de Harka aconteceram no Templo dos Heróis, cujas câmaras infinitas eram mais velhas que o mar e o céu. Ali estava recordado, ou profetizado, da ocasião em que as duas deusas irmãs criaram as dezoito raças para povoar o mundo ao lado dos homens, que eram os mais jovens mas também os mais velhos. Uma pergunta fora feita lá, também, por um escriba careca que estudava os mistérios do universo no casco das tartarugas.
"As deusas controlam nosso destino?"
O escriba foi um elfo que morreu há muitos séculos sem nunca encontrar sua resposta, mas talvez sua missão fosse apenas deixar uma pergunta, para incitar a curiosidade dos inocentes, tornar crianças homens, e hienas em gnolls.
Muitas outras profecias, perguntas e algumas respostas também habitavam o Templo dos Heróis, eternamente vigiados por fantasmas de papiro grafado que nasciam das mentes dos escribas, andarilhos, sacerdotes, filósofos e alquimistas que por lá passavam em busca de sabedoria. Bem como os heróis, aqueles que deixam o conforto de seus lares para desafiar os maiores poderes do mundo em busca da honra de seus reinos, segurança dos inocentes, e do repouso de sua alma.
Heróis mudavam o mundo. Mas quando as deusas começaram seu jogo, nenhum herói apareceu.
Os homens foram pegos de surpresa, junto com seus amigos halflings. A selvageria dos orcs deixou de ser um esporte para se tornar conquista, morte e chacina. Dragões pairavam nas alturas aguardando o fim da batalha para seu banquete de mortos, mas logo os elfos negros surgiram das colinas com celas de ferro, e os domaram com magia. Orcs, elfos negros e dragões, os filhos da noite, contra todo um continente.
Homens sobreviventes fugiram para o oeste a fim de pedir ajuda dos povos diurnos, e os cinco reis irmãos dos homens do leste uniram suas forças e prepararam suas tropas de mamutes, rinocerontes e cavaleiros com pele de metal em brasa. Pediram auxílio das belas ninfas e dos alados tengus para invocarem os imensos pássaros-roca, corujas tão grandes quanto dragões.
Das Mil Montanhas onde o continente termina no oeste, até a Muralha de Pedra que nunca foi ultrapassada no extremo leste, Harka tremeu, e mães gritaram.
As batalhas foram longas e sangrentas, e monstros famintos se erguiam do sangue dos caídos. Os anjos lamentavam audíveis nas alturas da noite, o sereno caindo como lágrimas, mas as deusas não choravam, jogavam xadrez, cada exército uma peça, cada captura uma vitória.Kayutar, a senhora do dia, da pele bronzeada e dos cachos castanhos brilhantes.Vityula, a senhora da noite, da pele pálida e dos olhos negros.
Rivais desde que nasceram no monte Varatart de uma lágrima de sua mãe, as duas foram rivais desde o início, resolvendo seus problemas em competições de beleza, poder e às vezes, de astúcia. Agora era a vez da astúcia, e a vencedora receberia da Águia Cósmica o Cristal dos Sete Elementos, que estava guardado nos degraus da Escada de Diamante no polo norte, que subia além do firmamento para a morada dos deuses.
Lá embaixo, órfãos pediam comida pelas ruas encardidas de vilarejos sem-lei, os golens de sangue assaltavam os viajantes, vormes fugindo de seus esconderijos, incomodados com o barulho e as vibrações de legiões de cavalos, touros e ursos marchando, assolaram plantações e devoraram muralhas. As igrejas de todos os deuses estavam lotadas, o Alto-Clérigo da Águia Cósmica ouviu repetidas vezes a mesma pergunta "onde está o herói?"
"A Águia de seus filhos cuida" ele respondia.
No Templo dos Heróis, um gnoll encontrou uma runa misteriosa, peça de um quebra-cabeça milenar, uma pintura de duas donzelas com asas de morcego, jogando um jogo antigo de plantar e contar sementes, as casas de suas famílias queimavam em torno delas. E não havia nenhum herói.
Então, o Alto-Clérigo sentiu raiva, e declarou que se sua deusa o controlava, ele não mais a serviria, "pois nenhum homem deve ser escravo".
Ora, ele procurou os vormes, e seus seguidores formaram um terceiro lado na guerra, e lutaram contra todos. Mas tanto os soldados diurnos quanto noturnos derrotaram os Selvagens Livres. Seu líder os guiou cheio de inspiração pelo Mar Sul até o continente de Ponta Selvagem, onde panteras gigantes e canibais de pele listrada destruíram todos eles.
Um eclipse se aproximou, e as crianças suspeitavam que seria o fim da guerra, pois as crianças já eram adultas aos 10 anos, chefes de suas aldeias. As mulheres já estavam na guerra, e os idosos eram raros.
Durante o eclipse, os cegos olharam para cima e viram as deusas sentadas e focadas em seu jogo, e a deusa do dia venceu. Quando o eclipse terminou, os estandartes da lua-cheia queimaram em um fogo roxo sobre os quatro cantos do continente, do Mar Sul até o Gelo Infinito ao norte. Eles haviam vencido, o exército noturno.
O povo, assustado clamou aos clérigos que restavam pra que invocassem a Águia-Cósmica, pois um mundo governado pelos noturnos era inconcebível, e eles queriam fugir deste mundo para outros como os textos sagrados contavam que ocorrera no passado longínquo.
As asas da Águia-Cósmica foram ouvidas em sonho como a canção de uma flor desabrochando, e os povos diurnos despertaram com o coração renovado para suportar mais uma estação.
E a deusa vitoriosa apareceu em Harka, portando o Cristal dos Sete Elementos. Ela chegou em uma aldeia pequena, onde um idoso e seu neto cuidavam de todos com muito esforço e astúcia. O que não tinham em poder, tinham em amor, e o idoso ensinava ao neto a ser um homem.
Nenhum filho do dia reconheceu a deusa, embora os animais, sim, que a reverenciavam como sua criadora. Ela pediu para o idoso e seu neto jogarem um jogo com os outros membros da aldeia, e eles amaram a ideia, pois eram tempos difíceis e todos estavam cansados das fadas e vampiros que governavam a cidade roubando suas posses, e diante da deusa disfarçada de sábia alquimista, nenhum filho da noite atrapalhou sua breve diversão.
Era uma versão diferente de um jogo antigo das tribos de gnolls do certo que cruza o meio do continente de norte a sul. Um jogo de plantar e contar sementes. A criança e seu avô foram os únicos que não trapacearam, e a forasteira de cabelo castanhos deu a eles o Cristal dos Sete Elementos, desaparecendo com um sorriso gentil.
Com o Cristal, a natureza seria dobrada e seus poderes subjugados.
No Templo dos Heróis, um meio-orc de bom coração escreveu um pergaminho com um sonho que teve, de um avô guiando seu neto órfão por um mar de sangue e tubarões-gorila vorazes que não conseguiam destruir seu barco. Após algum tempo, chegaram em uma terra próspera, de gramas azuis e palmeiras douradas, onde a paz não tinha fim.
"Talvez um dia alguém entenda" o meio-orc dissera.
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Fragmentos de Ecos Esquecidos
Short StoryColetânea de cenas e contos de fantasia, ficção científica, horror e outras quase-realidades que recebi a graça de conhecer.