Onda Pálida

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Eu nunca pensei que a luz do sol pudesse ser tão apavorante.

O centro de uma cidade, no centro de um país, no centro de um mundo.

Carros nas avenidas entre arranha-céus de janelas de vidro corriam sem parar ao horizonte.

O calor queimava como um inferno, e dava para sentir o suor.

Não o suor úmido de uma exercício físico, mas um suor molhado que era como a água descendo no corpo depois que se desliga um chuveiro.

As buzinas, o pneu sobre o asfalto, era tão repetitivo que se tornava um ruído monótono como um terrível silêncio.

As torres altas eram deusas indiferentes mostrando suas costas, espelhos que refletiam ainda mais luz, o ar esquentando, cada vez mais quente, cada vez mais lancinante.

Para onde quer eu olhasse, todos andavam focados, os olhos no horizonte, apressados, empaniquecidos, como se estivessem prestes a morrer.

Dava para ver como suavam pelo rastro que deixavam, como se torneiras estivessem presas em seus corpos, derramando suas almas líquidas.

Quanto mais corriam, mais perdiam.

A coisa morta no chão, fedendo.

Para todos os lados, as pessoas ofegavam em sinfonia selvagem.

Os carros ainda correndo sem parar em uma miríade cinzenta.

As poças se multiplicavam em uma chuva, e até as infinitas janelas pareciam se banhar em uma miragem de um deserto de podridão seca e abafada, na fluência serpental do sangue que escorre por uma ferida profunda.

Mais e mais o calor aumentava, e a vertigem era sua filha cruel, girando nossos cérebros e adormecendo nossas mentes desesperadas pelo frescor de uma água que parecia não existir.

Me apoei na parede úmida, vendo vinte dedos em minhas mãos.

Tentei recuperar o fôlego, mas o calor e o cheiro deixaram o ar como um vácuo inútil de onde meus pulmões parecia explodir entre as costelas para extrair a última partícula de oxigênio.

Quando olhei para trás, o gosto de vômito se revirando no estômago, vi uma marcha de homens e mulheres que pareciam esquecer como andar, caindo um por um como dominós sobre as próprias poças, gemendo, chorando, sem parar de marchar.

Os próprios rostos caindo com água, olhos, nariz, boca, um por um, carne por carne.

Uma pasta viscosa cujo odor em meu nariz era como o sabor de meu próprio vômito que não parava de sair da minha boca como uma cascata gosmenta com pequenos pedaços rosados e cinzentos do que um dia chamei de órgãos.

A multidão ainda marchava, marchava para o horizonte onde os carros iam com tanta pressa, não mais que vultos cinzas de semi-homens corcundas em uma marcha mais cruel, e as torres tremiam como se rissem da torrente pálida viscosa que se alastrava pelas calçadas, carregando bocas que ainda gemiam em agonia, nervos que ainda sentiam o transpassar da natureza cruel em sua beleza e loucura, e olhos que ainda temiam quem os aguardava no horizonte. 

Fragmentos de Ecos EsquecidosOnde histórias criam vida. Descubra agora