"E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações, e com vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também recebi de meu Pai. E dar-lhe-ei a estrela da manhã." Apocalipse 2:26-28
Eu vasculhei os cantos mais obscuros das fábulas e dos pesadelos em busca das chaves do universo. Ou vi coisas que nenhum olho viu, toquei em coisas que nem deveriam existir. Eu precisei perder e encontrar a mim mesmo para voltar a encontrar a mim mesmo. Tudo por um sonho arrogante, uma ideia tola, não sei ao certo. Mas eu precisava acima de tudo acessar a Quarta Dimensão.
Todos os humanos vivem suas vidas limitados às três dimensões, largura, altura e profundidade. Todos os nossos movimentos são nestes sentidos. Seres em 4 dimensões, por outro lado, poderiam causar a impressão – à nossa mente limitada à compreender apenas 3 – de que estão atravessando paredes, voando, se teletransportando, ocupando o mesmo espaço que outros corpos e, talvez, transitar pelo tempo.
Após anos de diagramas, experimentos com transmissão elétrica, deslocamento de moléculas e alterações biológicas causadas por fatores químicos programáveis, eu finalmente concluí o processo de trinta e quatro anos de lágrimas, suor, e talvez, se me atrevo a revelar, minha própria alma.
O aparelho era uma sequência de quatro arcos retangulares, um portal, em cujo interior se via apenas o outro lado de meu laboratório oculto no porão de uma casa abandonada. Estava cheio de aparatos tecnológicos baseados em teorias recentes, que foram aprimoradas quando apliquei conceitos míticos de anciãos tribais às nossas ferramentas modernas. Foi assim que foi capaz de criar algo que outros inventores apenas sonhavam em alcançar.
Para ativar a máquina, foi necessário fazer uma oração, abençoar o trabalho em um dos nomes originais do Deus de Abraão, e programar através de botões analógicos e alavancas o meu peso, altura e volume. Um tanque de água estava aclopado à máquina, com o meu peso em água. Isto era necessário pois eu havia existido na terceira dimensão desde o início, e sair dela, seria para o universo como um aborto ou amputação. A máquina convencia o universo de que a massa removida ainda estava presente, não em forma física, mas em forma de água e seus onipresentes átomos de hidrogênio.
Ao passar pelos 4 portais, minha meu ser era convertido para as outras dimensões, mas eu precisava seguir o caminho natural da complexidade.
Comecei em 3 dimensões, simplesmente caminhando pelo portal em direção Sul, entrando na Segunda Dimensão. Eu vi o universo como uma única linha, difícil de descrever algo infinitamente fino como uma linha perfeita, mas havia criaturas lá, sim, eu ouvi suas palavras em uma língua estranha e vibracional, que me fez ponderar sobre como o ar funcionava neste estado, ou, como o som seria percebido para eles. Será que em diferentes dimensões, som é visto como cor, e pensamentos são vistos como matéria? Eu não quis me demorar ali, continuei seguindo em direção ao Sul para o próximo portal, onde me tornei unidimensional. Eu, e todo o universo, éramos um ponto, um único ponto sem nenhum comprimento, altura ou profundidade, apenas uma dimensão que existe em si mesma, sem avançar ou retroceder, algo totalmente finito e infinito ao mesmo tempo, uma compreensão que apenas um ser que assistiu um ponto por dentro é capaz de perceber.
Eu não era capaz de me mover, e eu não entendia meus pensamentos, que se tornaram outro tipo de "substância", não mais as vozes na minha mente, apenas "compreensão", uma noção clara, extremamente forte e invariável, de um único fato. Minhas ideias fluíam uma por vez, apenas uma compreensão por vez. Eu sentia meus pensamentos como o sangue pelo meu corpo, éramos um, eu era o ponto, e tudo era o ponto, só havia o ponto. Como eu imaginava que na Primeira Dimensão eu não poderia ter total controle de mim mesmo - pois, o ponto não é capaz de se mover, no mundo dele, só existe ele – eu garanti que minha máquina me puxasse de volta para a Segunda Dimensão depois que meu ser tivesse entrado ali. Eu vi a máquina me puxando como uma mulher de pele branca como gelo, usando um vestido de vidro. Mas tudo isso era compreensão, não visão, e cada aspecto de sua beleza ocupava meu eu-mente, uma compreensão por vez. O sorriso dela era uma voz me seduzindo, com carinho, não malícia, para seguí-la. Entendi que o poder de sair dali estava em minha decisão atual, não no que programei em minha máquina. Eu estiquei a mão – e isso também foi compreensão, pois o ponto não tem mão, nem forma, apenas vida, vida conceitual. Como uma poesia que respira. Eu acordei na segunda dimensão, e me cercado por criaturas geométricas, nem orgânicas nem artificiais, me ameaçando com seus sons-cores que atordoavam a mente e enfraqueciam os ossos. Eu corri em direção ao norte o mais rápido que pude, os monstros ainda me caçando, e alcancei a Terceira Dimensão. De volta em meu laboratório, com uma tontura agonizante, foi difícil permanecer em pé. Meu peito doía, as memórias foram convertidas em emoções, sentido desejos, medos, prazeres e angústias que não tenho palavras para descrever, mas meu coração, ou meu espírito, as entendia bem. Não era algo da matéria, mas de um aspecto muito mais antigo e exterior da biologia humana. Algo que uma parte minha era fluente na compreensão, e essa compreensão me derrubou no chão, com lágrimas nos olhos, e soluços na garganta. Eu senti um peso grande demais para suportar sobre mim, era como se a gravidade declarasse guerra à minha alma.
Não pare... não pare... não pare...
Ouvi uma memória falar em meu coração. Era uma compreensão do ponto voltando para mim como lembrança de um sonho antigo... não pare...
Eu precisava terminar o que comecei, encontrar a Quarta Dimensão era meu objetivo, e para ela eu me arrastei pelo chão, deixando um rastro de lágrimas para trás, lágrimas que me sufocavam, lágrimas que me afogavam, lágrimas que não conseguiram entrar na Quarta Dimensão quando minhas mãos avançaram pelo chão além do Quarto Portal.
Eu cheguei. Me encontro sentado sobre a música do silêncio. Meu olho direito contempla o amanhã, e meu olho esquerda contempla o ontem. Eu estou aqui mas também lá, com o começo e o fim de tudo tão nítidos diante de mim, como ver as duas palmas das próprias mãos. O universo está nelas, nascendo, crescendo e se transformando. Eu sou o passado, eu serei o presente, eu fui o futuro... eu sou o futuro, eu fui o presente, eu serei o passado... eu fui o passado, eu sou o presente, eu serei o futuro...
Eu a vejo novamente, a donzela de vidro, colocando uma batuta de maestro em minha mão.
– Reine – ela diz, indicando com sua mão pálida o infinito que eu vejo com clareza igual à de quando eu fui o ponto.
Eu agarro a batuta com firmeza, e estico os braços diante do Tudo.
Quando a luz é acesa, eu nasço para guiar o Agora e o Depois. Todos os segundos, todos os minutos, todos os milênios, todas as eras. Eu sou a Quarta Dimensão. Eu sou o Tempo!
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Fragmentos de Ecos Esquecidos
Short StoryColetânea de cenas e contos de fantasia, ficção científica, horror e outras quase-realidades que recebi a graça de conhecer.