Ano: 2341
Local: Planeta Terra
À medida que movia uma perna atrás da outra, numa sucessão síncrona de movimentos velozes e agonizantes, o contínuo do tempo esbatia-se à sua volta, tomando uma forma difusa e imperceptível, em que segundos pareciam horas, e horas pareciam segundos. Naquela anarquia inatural, aberração máxima de tudo o que era corriqueiro, tinha vislumbres, lúcidos, das vidas que ceifava, não de forma consciente como costume, mas de forma animal, algo instintivo e visceral. Não importava como matava, podia ser com o seu blaster, com a sua faca, ou mesmo com os seus punhos despidos, tudo o que contava era que os aniquilasse a todos, não permitindo que nenhum deles sobrevivesse, nem que incapacitado.
Sempre notou o seu monstro interior, adormecido nas reentrâncias porosas da sua consciência, sempre viu a sua sombra impactante esgueirar-se pela tímida luz que o iluminava, enegrecendo-a mais a cada trauma que sofria, ganhando terreno de uma forma preocupante. Agora, enquanto corria por aquele cemitério improvisado, onde dezenas de vidas sucumbiam aos seus caprichos, soube que já era tarde demais, o monstro tinha, finalmente, vencido a batalha da sua alma, movido pelo mais inflamável combustível de todos, a raiva. Usa-me, monstro! Cedo-te tudo de mim, mas permite-me chegar a tempo. Pensou, com uma vontade alucinante de gritar, expelindo os seus temores mais enraizados.
Num dos inúmeros corredores que percorria em azáfama, ouviu um grito que captou a sua atenção, vindo de uma voz que conhecia muito bem, fazendo parte da sua vida, de uma forma ou de outra. Acelerando os seus passos, desconcertantes, chegou a um cruzamento perto do local de origem do som, por onde olhou em ambas as direções, desesperado por ter um vislumbre qualquer, capaz de o orientar naquela jornada. Como se as suas lamúrias tivessem sido ouvidas, viu Lara deitada no chão, ao lado de um homem com um olho perfurado. Ali perto, dois estranhos circundavam o seu filho, sendo que um deles lhe apontava uma arma, à queima roupa, preparando-se para disparar, pelo que podia perceber.
Tomado por uma mistura, intoxicante, de ódio e alívio, fixou o espaço à beira do agressor do rapaz, saltando para lá, imediatamente, de forma quase automática. Em menos de um segundo, estava a meros centímetros do homem, desviando a direção do seu braço, de forma a falhar o tiro certeiro que tinha acabado de disparar, destinado à cabeça do jovem. Sem lhe dar tempo para contra-atacar ou, sequer, gemer, Rami usou o seu braço robótico para lhe agarrar a garganta, projetando-o com toda a sua força contra a parede atrás, provocando um buraco saliente com o crânio da sua vítima, que, por consequência, causou um aglomerado de fissuras pela totalidade da parede, tamanha a onda de choque provocada.
Guiado, mais pelo instinto, do que qualquer outro sentido aguçado, saltou uns metros para a esquerda, tendo-se esquivado de dois tiros disparados pelo outro homem, que acabaram por acertar na silhueta disforme do seu antigo companheiro. Aproveitando a confusão estampada no rosto do seu adversário, correu até ele, começando a esmurrar o rosto com o seu punho metalizado, numa sucessão de movimentos precisos e cruéis, que, aos poucos, iam pintando a sua luva com os tons encarnados do fluido vital. Incapaz de reagir, apenas recebia os ataques com a inércia mortal de alguém já perdido, extraviado nos corredores do outro mundo. Podia ter pegado no seu blaster e terminado tudo ali, contudo, sentia um prazer visceral em cada golpe que disferia, deixando o seu monstro sair para brincar. Já com o adversário imobilizado no chão, continuou a esmurrá-lo, uma e outra vez, notando os limites da sua sanidade a serem ultrapassados, rumo aos terrenos conhecidos da loucura.
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Ponto de Fuga - Dois Destinos
Ficção CientíficaO ano é 2316. Uma grande guerra intergalática com uma desconhecida civilização extraterrestre assola todos os territórios terrestres. Colónias inteiras são dizimadas em batalhas catastróficas e desumanas. Já no Planeta Terra, a tecnologia fervilha...