Deixe-me ajudá-la

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Flashback Off

Fui acordada violentamente pelo despertador e caí do sofá que eu tinha passado a noite anterior, o dia foi tão exaustivo que sequer vi quando dormi. Eu não tinha jantado, ultimamente a fome era minha inimiga. Levantei-me rapidamente sentindo um leve desconforto na coluna e jurei por minha vida que nunca mais dormiria de qualquer jeito quando chegasse extremamente esgotada do trabalho. 

Mais uma vez, eu estava diante o espelho, fazendo minha higiene matinal e tentando pensar no que eu teria pela frente ainda hoje. Mas não, eu não conseguia. Eu me pegava pensando novamente naquela xícara de café estendida, no sono tranquilo, no sorriso esboçado quando a coloquei na cama para dormir. Soltei um sorriso involuntário e deixei cair algumas lágrimas, mas já era tarde demais. Senti minhas nádegas se encontrarem com o chão no box do banheiro, enterrando as mãos em meus cabelos, mais uma vez eu estava me entregando com toda a dor que eu tinha a um choro descontrolado, arrebatador e fatal. 

Mas eu não podia ficar aqui para sempre, me entregando de bandeja aos meus fantasmas, enquanto eles acalentavam a minha solidão, o meu peito rasgado e dilacerado. Levantei-me com as forças que restavam e segui adiante, eu aprendi a fazer isso, mesmo com uma carga pesada nas costas. Levantar-se, se erguer e prosseguir. 

Sai em direção a G&J — Cafeteria, era lá o meu refúgio em maiores tempestades, meu lugar de paz em que eu podia desfrutar do café da manhã e dos meus livros em silêncio, além de ganhar abraços calorosos daquele que eu tinha por pai. Assim que cheguei, notei uma moça sentada em uma das mesas que eu também frequentava há mais de anos. Sim, é infantil da minha parte ficar contrariada com isso? Um pouco. Mas entendam, durante todas as manhãs e tardes, eu nunca vi uma alma sequer sentada onde eu também costumava ficar. 

— Posso? — Falei puxando uma cadeira bem à frente da moça. Ela estava com um livro em mãos que escondia seu rosto, ainda não havia pedido nada, já que a mesa estava vazia.

— Ahn... O quê? — Abaixou o livro, me encarando. — Ah sim, sim. Pode sim! Desculpa, eu não vi você aí. — Falou gesticulando, visivelmente envergonhada.

— Qual livro está lendo hoje? — Falei observando seu rosto angelical. 

É claro, eu tinha lido o nome do livro, mas por um impulso, quis ouvir como ela descreveria. Quando eu tinha sete anos de idade, meu pai ensinou-me que as pessoas gostam de ser ouvidas, de ter alguém que preste atenção. Elas quando desabafam, não falam esperando uma resposta. Apenas desejam que as escutem, e isto pode vir com um olhar atencioso e um coração pronto para se doar.  Às vezes, precisamos apenas ouvir e isso com certeza é a maior ajuda que conseguimos prestar ao outro.

— Dom Quixote de La Mancha, comecei a ler ontem. — Disse em um tom orgulhoso.

Sorri abertamente, prestando atenção em cada detalhe que ela contava entusiasmada sobre a história.

— E bom, eu achei muito engraçado essa parte aqui, olha. — Dizia ela procurando a página do livro para me mostrar. — Aqui, leia.

— Ali estão, Sancho Pança, trinta desaforados gigantes, ou pouco mais, aos quais vou dar combate e tirar-lhes a vida. Tomarei deles os bens que possuem e assim começaremos a enriquecer.
— Que gigantes? — Indagou Sancho Pança.
— Aqueles que estão bem ali, de braços enormes.
— Veja bem, meu amo, aquilo não são gigantes e sim moinhos de vento. E o que vosmecê pensa que são braços, na verdade são as pás dos moinhos.

Soltei uma risada nasal quando li, mesmo notando discretamente de lado a empolgação dela para captar minhas expressões faciais lendo o livro, eu sabia que ela queria apenas que eu sentisse a mesma coisa que ela sentiu quando leu. 

O Recomeço | SarietteOnde histórias criam vida. Descubra agora