Pior que isso não fica.

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Flashback Off

Livrei-me mais uma vez dos fantasmas da minha cabeça e segui em direção ao trabalho. Olhei para o céu acima e pude notar que certamente choveria hoje. O trânsito estava caótico para quem ia trabalhar, devido ao feriado que se aproximava, todos tinham feito o favor de sair no mesmo horário. Céus! Há como piorar?

Faltava apenas uma rua para que eu finalmente pudesse chegar em meu local de trabalho, o relógio marcava 08h30, eu certamente já deveria estar lá. Ouvi um disparo e comecei a olhar para os lados, tentei prosseguir o mais rápido que eu pude com o carro, mas eu não consegui. Desci bufante do carro e para minha surpresa ou azar, o pneu tinha furado.

- Droga, droga, droga! Que inferno! - Exclamei em voz alta. - Mas tudo bem, pior que isso não fica.
Peguei alguns equipamentos que eu certamente levava em meu carro e me abaixei para tentar ajeitar o mais rápido possível. Senti algo úmido em minha calça enquanto eu permanecia abaixada, virei-me e vi um cachorro vira-lata que tinha achado um banheiro perfeito para fazer suas necessidades. Isso mesmo, eu!

- Porra, você não tem um lugar melhor cachorro dos infernos? - Falei aos gritos.

Eu estava quase lá, fazia um calor escaldante e a rua mesmo naquele horário estava completamente deserta. Demorou alguns minutos, até que consegui com êxito arrumar o pneu.
- Finalmente! - Exclamei vitoriosa.
Entrei no carro dando partida, mas ele simplesmente não ia. A gasolina acabou! Esmurrei o volante e desci do carro, indo em direção ao trabalho mesmo assim. Quando de repente iniciou uma tempestade caótica, eu estava ensopada, com resquícios de fezes e com um carro sem gasolina. Cheguei no Instituto de Perícia Científica aos tropeços e escorregões, o relógio marcava 10h45 da manhã e eu não tinha feito metade do que seria minha obrigação.

- Hoje não é um bom dia pra você, Sarinha! - Johan exclamou rindo, com uma caneca de café em mãos.

É claro, naquela altura do campeonato, eu já tinha atraído olhares de toda a recepção e dos outros policiais, peritos e investigadores.

- Não me enche, Johan! - Falei indo em direção a minha sala - Ah, providencie para mim uma nova roupa, café e peça para que vão buscar meu carro.

Entrei rapidamente na minha sala e bati a porta. Não demorou muito para que Johan chegasse com novas roupas que o mesmo foi buscar em meu apartamento, creio que ele tenha percebido a ausência do jaleco e do distintivo, fazendo questão de levar entre as roupas. Johan era o meu verdadeiro anjo da guarda, éramos inseparáveis, trabalhamos juntos há mais de dez anos. Ele é meio gordo, com uma aparência jovial e de pele branca. É gente fina!

- Não se esqueça que você precisa escolher dois assistentes pessoais para os próximos casos.

- Quantos já temos? - Perguntei enquanto arrumava meu terno preto.

- Vinte mulheres e trinta rapazes.

- Tenho algum caso ou análise para hoje?

- Foi transferido para a Srta. Kerline, você precisa cuidar disso e requer tempo. Qualquer coisa, me chame.

- Mande o primeiro entrar.

Passei horas dentro de uma sala analisando currículos, o relógio marcava 16h50 e eu sequer tinha almoçado ou feito um lanche. Estava esgotada de tanto ouvir e questionar. Eu já havia escolhido um rapaz, seu nome era Higor, era formado em farmácia e biologia, atuante na área de perícia genética forense. Restava então, apenas uma mulher. Já que eu tinha dispensado todos os homens presentes.

Sai da sala disposta a ir embora, sem ao menos entrevistar a última que restava. Decidi dizer ao Johan que fizesse uma nova seleção para outra seleta. Cheguei na recepção e vi a mesma moça da floricultura sentada em uma das cadeiras, concentrada em um livro que julguei ser de Shakespeare. Dessa vez, ela não vestia um macacão que a deixava com uma aparência de adolescente. Mas sim, um terno branco que dava um ar de poder, superioridade.

- Coincidência, não? - Falei, sentando-me ao seu lado.

- Ah, oi! - Falou sorrindo, enquanto fechava o livro.

- Está aguardando alguém?

- Apenas uma entrevista.

- Posso ver? - Apontei para o currículo.

Ela entregou-me cuidadosamente e pude ver detalhadamente cada item.

- Juliette, 31 anos - Eu dizia calmamente em um tom audível - cursou Direito, Farmácia e bem, é poliglota? Além de ter ótimas e exemplares bases em psicologia. - Sorri achando inacreditável o que eu lia.

- Ainda pode me chamar de Ju, se quiser. - Sorriu de lado.

- Se você conseguir se sair bem na entrevista, quer atuar em qual área?

- Investigadora Forense.

- Vai se sair bem. Boa sorte! - Sorri de lado, levantando-me - Tenho que ir agora. Até mais!
- Até!

Ao entrar no carro, liguei para Johan.

- Contrate a Srta. Juliette, diga a ela que amanhã mesmo ela inicia seu primeiro dia de trabalho com o Higor. Às 07h30.

Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi retirar o coturno e me jogar entre o sofá e as almofadas. Dia exaustivo! Evitei qualquer tipo de recordação do dia, levantando-me e indo em direção ao banheiro.

Eu admirava o céu estrelado da varanda do meu apartamento, deitada no sofá, bebericando um chá de camomila. Eu não sei se realmente gostava da solidão ou aprendi a conviver com ela, mas de toda forma, a mesma me fazia bem. Eu ouvia pacientemente o arranhar do violino que ecoava pela casa enquanto revezava o olhar entre o céu estrelado e as luzes da cidade. Era uma noite melancólica, silenciosa e vazia.

Flashback On

- Eu sei que você queria ficar sozinha, mas eu não quero. Posso ficar aqui mesmo em silêncio amor?

Olhei-a com ternura e assenti, com um sorriso em meus lábios. Eu observava às estrelas naquela noite, mas havia uma constelação única nos olhos dela e eu nunca seria capaz de descrever em linhas certas. Ela estendeu uma caneca de café quente, enquanto nos envolvia em um cobertor. Fazia frio naquela noite, era um outono. Silenciosamente ficou ao meu lado, observando o mesmo horizonte incerto e grandioso que eu. Sua respiração estava baixa e lenta, uma melodia tão inigualável que nem mesmo Mozart seria capaz de compor, mesmo com seus vastos anos de experiência. Virei meu rosto para observar aquela cena e notei sua cabeça encostada em meu braço, um pequeno montinho enrolado, dormindo serenamente. Ajeitei-a vagarosamente, puxando-a para meus braços, dei um suave beijo em seus cabelos. Ela resmungou algumas palavras desconexas, prestes acordar.

- Dorme, meu amor. Não se preocupe! Apenas durma.

E assim, eu pude contemplar dois universos. Um acima de mim e o outro em meus braços. A lua, as estrelas e os cosmos nos assistiam silenciosamente, incapazes de fazer algum resquício de barulho que comprometesse a pequena criação que repousava em meus braços serenamente. Se as variadas estrelas enfeitavam aquele céu que me abrigava, as melhores estrelas repousavam nos olhos dela e somente dela. Como se fosse a mais delicada e preciosa criação já feita por toda a divindade.

O Recomeço | SarietteOnde histórias criam vida. Descubra agora