Capítulo 1

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No bagunçado quarto de casal, o homem mal-humorado se arrumava em frente ao espelho. Vestia a camisa escura, ajeitava a gravata, já encarando o terno sob a cama. Podia ouvir a esposa cantarolar no banheiro, alheia ao seu estresse.

─ Alicia, você sabe que eu odeio usar roupa social. ─ ele perdeu a paciência, indo pegar a última peça de roupa ─ Ainda mais tudo preto.

─ Paulo, é uma cerimônia de homenagem fúnebre, pelo amor de Deus. Você quer ir como? De colete e touca na cabeça? Só falta querer colocar de novo os fones no pescoço. ─ a morena apareceu na porta do banheiro, revirando os olhos enquanto sorria.

─ Qual é, gata, eu jurava que a diaba já estava morta há tempos. ─ ela lhe lançou um olhar bravo que o fez se encolher ─ É brincadeira. Mas eu não entendo porque nós temos que ir, Ali.

─ Pela Carmen, Paulo. Ela fez uma homenagem e um convite muito bonito no Facebook, ela estava muito próxima da diretora Olívia.

─ Mas nós nem somos mais próximos da Carmen, Alicia. Nem dela, e nem de ninguém que estudava com a gente. Com exceção do Mário, mas porque ele é casado com a minha irmã. ─ Paulo se escorou na porta, afundando as mãos nos bolsos. Alicia suspirou, deixando a escova de lado e indo até o marido.

Parou de frente para ele, enlaçando o seu pescoço com os braços, enquanto ele fazia o mesmo com a sua cintura. Lhe deu um longo selinho, apoiando a testa em seus ombros.

─ Foi naquela escola que a gente se conheceu e se apaixonou. Foi em meio aos gritos e advertências da diretora Olívia que nós começamos a namorar e criamos coragem de confessar o que sentíamos para todo mundo. Eu não consigo esquecer a cara dela quando eu encontrei com ela no mercado, alguns anos atrás, e ela me viu grávida. Ela parecia estar orgulhosa, Paulo, de ver o que eu tinha me tornado. Eu não posso deixar de estar lá.

O sussurro foi baixo, mas o suficiente para o marido entender. Ele beijou o topo de sua cabeça, sentindo as lágrimas que ela teimava em não verter. Ele segurou o seu queixo com delicadeza, como fazia desde a época em que ainda tentava conquistá-la.

─ Nós vamos estar lá, fique tranquila. ─ ele sorriu com carinho, lhe dando um selinho ─ Até porque, eu passei mais tempo da minha vida escolar na sala da diretora Olívia do que no pátio brincando, não poderia deixar de me despedir de tão ilustre pessoa.

─ Por que você ficava na sala da diretora ao invés de brincar, papai? ─ viraram depressa, surpresos pela chegada de uma pessoinha saltitante. Paulo se afastou da esposa, pegando o menininho risonho no ar ─ Você aprontava muito?

─ Que nada, é que eu gostava muito da diretora, então queria ver ela sempre. ─ Alicia voltou para o banheiro aos risos, se divertindo com a eterna cara de pau do marido ─ E você, senhor Lucas, está pronto?

─ Você precisa amarrar os meus tênis. ─ o garotinho indicou os pés, ao que o pai se abaixou e começou a trabalhar ali. Lucas observou o banheiro e perguntou em voz baixa ─ A mamãe está triste, papai?

─ Um pouco, filho. Ela gostava muito da dona Olívia. Todos nós gostávamos. ─ Paulo deu um sorrisinho amarelo, encarando o garotinho de quase seis anos que era a cópia da mãe.

─ E por que eu não estudo naquela escola, como vocês estudaram?

─ É que ela é meio longe da nossa casa, não é? A sua é mais pertinho, fica mais fácil para a mamãe e o papai. Além do que, o papai dá aula na sua escola, não é? ─ Lucas assentiu, sorrindo ─ Agora vai ficar com a sua irmã e não deixa ela se sujar, e então podemos sair.

Ao ver o filho sumir pelo corredor, Paulo voltou à porta do banheiro, encarando a esposa. Ela andava muito pensativa desde a mensagem de Carmen e Daniel, alguns dias antes, com a imagem digitalizada do que haviam colocado na cápsula do tempo.

Sendo bem honesto, em quase vinte anos nunca pensou no que havia colocado ali. A ideia de se colocar como político veio de uma conversa no café da manhã com os pais e a irmã, quando sua mãe brincou que ele poderia ser candidato e Marcelina a sua assistente, tamanha era a dinâmica entre eles. Foi preciso um olhar na ocasião para os irmãos se entenderem e criarem histórias complementares.

Mas nunca havia perguntado qual havia sido o desenho de Alicia, nem antes e nem depois de começarem a namorar. Ela nunca havia sido muito de pensar no futuro, então achou que ela tivesse colocado qualquer coisa em seu desenho. Mas quando o viu, também ficou reflexivo.

Ela havia se descrito como pilota de aviões, e apesar de ele ter perguntado dezenas de vezes, ela jurava que era apenas uma coincidência... Coincidência que, quando ele se esqueceu da camisinha e a engravidou por acidente, quando tinham apenas 22 anos, ela estivesse fazendo o curso para pilotar aviões.

Ela sempre foi determinada, mas frágil por dentro. Se lembrava de como ela se chateou quando criança, ao ouvir que nenhum dos meninos se casaria com ela. Se lembrava de todas as vezes que ela chegou chorando da faculdade de engenharia mecânica, após ser zombada e humilhada pelos colegas de sala, apenas por ser mulher. E quando ela começou a pilotar, e ele a viu se realizar e encontrar, ela deixou tudo de lado para cuidar de Lucas. Sabia que ela era feliz, era chocante o quanto Alicia amava ser mãe, mas apesar de toda a garra que veio com isso para proteger Lucas, e depois Isis, também veio uma nova fragilidade.

A relação já difícil dela com os pais ficou ainda mais complicada. Os dois não se conformavam que a filha, que sempre havia sido "do contra", que sempre havia jurado conquistar o mundo, agora se contentasse apenas em ficar em casa e cuidar dos filhos. Talvez por isso o olhar de orgulho da antiga diretora, ao encontrá-la anos antes, significasse tanto para ela.

─ Paulo, você viu se a Isis ainda está inteira? ─ Alicia saiu do banheiro, encontrando o marido com o olhar longe ─ Amor, está tudo bem?

─ Está, está sim. ─ ele balançou a cabeça de leve, colocando o terno ─ Pedi para o Lucas ficar com ela.

─ E você se esquece que o Lucas é nosso filho, portanto, uma máquina de bagunça. Se o vestido da menina não estiver pendurado no lustre, já me dou por feliz. ─ Paulo deu um riso fraco, enquanto Alicia parava ao seu lado ─ Tem certeza de que está bem? Não está pensando na história do desenho de novo, não é?

─ Não. ─ ele mentiu, mas ela o conhecia bem.

─ Paulo, eu fiz aquele desenho quando eu era uma criança, não fazia ideia do que queria. Calhou que, mais de dez anos depois, eu achei a mesma ideia interessante. Mas não era nada planejado, nem sonhado por uma vida inteira. E você sabe que eu não trocaria o nosso filho por nada, não é? ─ ela segurou o rosto dele com carinho.

─ Mesmo você sendo a menina que disse que nunca ia casar? ─ ela riu ao lembrar daquilo.

─ E você era o garoto que nunca ia chegar perto de uma menina. E olha só: casou com uma, e virou pai de outra. Nós não somos mais as criancinhas do terceiro ano da professora Helena, Paulo, mas sim adultos com responsabilidades. Não podemos deixar que isso nos afete. ─ ela pediu, selando seus lábios com carinho ─ Agora vem, vamos pegar os nossos diabinhos e ir infernizar a diretora Olívia uma última vez.

Na sala, ficaram surpresos ao encontrar os filhos sentados, quietinhos, lado a lado. Lucas correu e deu a mão para o pai, enquanto Alicia apanhava a filha caçula, de um ano e meio, no sofá, conferindo se a sua roupa estava em ordem.

─ Posso levar o skate, mamãe?

─ Hoje não, Lucas, hoje é um dia muito sério. ─ explicou Alicia, acariciando o rosto do filho ─ Outro dia eu prometo que saímos andar juntos, está bem?

─ E enquanto isso, o papai e a Isis ficam quietinhos só olhando. ─ a família riu do comentário do patriarca, que encarou o relógio ─ Melhor irmos, ou chegaremos bastante atrasados.

Depressa, os quatro deixaram o apartamento e rumaram para a garagem, em busca do carro. Mal sabiam as surpresas que os aguardavam na Escola Mundial. 

20 Anos Depois - A salvação da Escola MundialOnde histórias criam vida. Descubra agora