PRÓLOGO: TORNE-SE A SEXTA PEÇA

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6 de Junho de 2020 - 04:20

Mesmo que eu tente evitar o pensamento ele vem à minha mente, meu avô sempre dizia: "Cada segundo que se passa é uma dádiva aos Evoluídos", ele tinha o costume de chamar as pessoas sábias de suas histórias de Evoluídos, bem, pelo menos foi assim que eu interpretei durante toda minha vida. Todas as vezes que eu chegava da escola após ter brigado ele costumava repetir essas palavras e mesmo que eu não tenha as entendido na época eu as guardei porque eu amava o velho Antônio e o doloroso vazio que sua morte me trazia me fez perder totalmente o sono durante essa madrugada, o que é normal pois eu já durmo mal, mas o agravante é algo imensurável hoje.

A polícia me contatou pouco depois das três da manhã dizendo: "Ah, alô, é o Victor Vicent", após eu assentir ouvi: "Bem, seu pai está morto, sinto muito". Provavelmente meu contato estava salvo no celular do meu avô como: Victor Vicent Filho, e como tecnicamente ele era meu pai adotivo eu não corrigi o policial, apenas perguntei onde tudo havia acontecido, me arrumei e agora estou aqui dirigindo para o Bairro Longevidade, onde meu avô foi assassinado. Eu não aguentaria ouvir metade das informações pelo celular, eu queria saber tudo de uma vez.

Mesmo que eu evitasse, os questionamentos eram inevitáveis; vô Antônio odiava a cidade grande, ainda mais uma metrópole do tamanho de Aurora, isso porque ele me criou durante toda a minha infância numa chácara na cidadezinha de Poente do Sul, no interior de Goiás, onde criava plantas e animais, todo o brilho em seus olhos ao me ver ajudando-o ou notando o crescimento da pequena plantação vinham em minha mente agora como socos sequenciais, junto a isso a memória dele reclamando da cidade grande vinha, e o questionamento: "Por que ele estava aqui?" pairava na minha cabeça.

Eu já havia saído de Poente do Sul há cerca de seis anos para poder estudar na cidade de Aurora, mas eu amava a cidadezinha e a paz que ela trazia consigo era tudo que eu queria agora. Vô Antônio me visitava nas férias, nisso ele aproveitava para resolver seus problemas aqui na cidade, ele fazia papel de velho pobre e sofrido mas tinha bastante dinheiro e era muito inteligente, antes de me tirar do orfanato ele era um dos líderes de uma grande empresa junto ao seus dois irmãos, isso fez com que ele sempre buscasse conhecimento, fazendo-o entender um pouco sobre tudo; com setenta e sete anos ele se virava sobrenaturalmente bem e não gostava que o tratassem com desdém, então eu sempre deixava ele se virar por Aurora e especificamente agora esse pensamento martela minha cabeça enquanto lágrimas frias descem e encharcam meu rosto, eu quase perco a visão da estrada, uso o antebraço para enxugar meus olhos marejados e continuo com as mãos firmes no volante tentando pensar em outra coisa, mas gradativamente o GPS aponta que estou próximo do local em que os policiais me disseram pra ir e os pensamentos relutam em mim cada vez mais.

Provavelmente se eu não tivesse falado com tanta seriedade na ligação os policiais não me deixariam vir aqui para a averiguação, e mesmo que o questionamento: "Ele pode não ter morrido" exista, ao ouvir a notícia pelo celular, por algum motivo inexplicável, eu sabia que com certeza era ele.

Após sair da avenida principal e entrar diretamente no Bairro Longevidade passei por alguns quarteirões e gradativamente a cidade foi ficando mais sem cor e adoecida, era um bairro mais pobre e como era madrugada eu já fazia mil teorias do que poderia ter acontecido com meu avô, era inevitável pra mim, linhas e mais linhas de pensamento sobre o que poderia ter ocorrido se ligavam na minha mente e eu só tentava prestar mais atenção na estrada para chegar logo ao local e saber a verdade.

Por volta das quatro e quarenta da madrugada eu chego ao local, que não era difícil de encontrar, era uma rua estreita com calçadas mais estreitas ainda, fechada dos dois lados pela polícia, cheia de casas sem acabamento ou apenas no tijolo, barracos de madeira e um contêiner de lixo do lado direito de onde eu vim, logo estacionei o velho Opala na esquina, desci e senti o sereno frio ao respirar, mesmo que fosse verão qualquer morador congelaria de frio a essa hora. Segui em direção ao bloqueio na rua, me identifiquei ao policial para poder passar e ele me indicou a onde ir; o clima frio e úmido piorava ainda mais meu nervosismo, enquanto eu andava na direção dos outros policiais eu podia ver as gotículas de água caindo refletidas pela luz vermelho alaranjada do único poste que ficava a minha esquerda, mais à frente onde parecia ter ocorrido o crime havia três policiais à direita, eles estavam na frente do que parecia um pequeno e velho bar.

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