CAPÍTULO 1: COINCIDÊNCIA

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6 de Janeiro de 2021 - 11:31

Mesmo tendo toda a sua família em Goiânia, vô Antônio deixou toda sua grana comigo, o que por um lado era algo a se julgar como sorte, mas por outro lado era um imenso, pesado e cruel azar. Eu havia desistido da faculdade de direito no final do segundo semestre em Dezembro de 2014, passei em todas as matérias e via certo futuro na área policial, mas consegui algo "melhor" pra mim. Arrumei um trampo de investigador particular, eu costumava me intitular "quebra galho", que levando ao pé da letra era o que eu realmente era; decidi trancar a faculdade assim que esse serviço começou a me dar lucro, eu sabia que era bom demais como investigador para continuar ali, parado numa faculdade monótona e demorada, mas vô Antônio não aceitaria isso de jeito algum, então escondi isso dele, ele continuou pagando minha faculdade e enquanto eu mentia pra ele dizendo que havia arrumado um estágio pra pagar minhas despesas eu usava a grana da faculdade que ele me dava pra outras coisas. Essa sensação de desgosto comigo mesmo que eu escondia enquanto vô Antônio estava vivo veio toda a tona quando vi seu corpo em meu carro, provavelmente aquela ânsia de vômito que senti foi por nojo de mim mesmo.

Toda a repulsa aumentou ainda mais quando a quantia milionária das contas do meu avô foram passadas para a minha conta, às vezes eu me pegava encarando o celular com o aplicativo da conta bancária, olhando aqueles inúmeros dígitos e jurando a mim mesmo nunca encostar naquele dinheiro, e foi o que eu fiz até agora, me sustentando apenas com o dinheiro que eu mesmo havia guardado, porém o peso na minha consciência me fez voltar à faculdade no segundo semestre de 2020, aproximadamente um mês após a morte de vô Antônio. Atualmente estou de férias, as aulas voltam em Fevereiro.

Mesmo que eu tenha uma autoestima relativamente baixa, modéstia parte eu sou muito bom como investigador, ou como vô Antônio dizia: "baita olheiro fi". Quando alguma peça faltava nos concertos ao trator do meu avô ou alguma coisa se perdia na bagunça no velho galpão e eu sempre encontrava era o que ele costumava dizer. É irônico pensar que nós somos apenas uma matéria consciente multiplicada pelo tempo, eu, criança fazendo investigação para deixar meu avô feliz e agora faço isso pra viver, ou ao menos fazia, até entrei pra uma faculdade para futuramente trabalhar legalmente no ramo, sinto que fui apenas multiplicado pelo próprio tempo.

Agora me pego sentado enquanto tomo uns remédios para acalmar a mente e parar de pensar em coisas destrutivas. Como estou sentado no sofá da sala do meu apartamento só precisei me esticar até a mesa de centro, pegar uns comprimidos e tomar com água, mas como estou muito eufórico pra sequer buscar água eu pego uma velha garrafa de pinga do meu avô que está junto aos pés do sofá e uso-a no lugar da água. O gosto amargo e forte do álcool quase inibe a textura dos remédios, isso faz com que pelo menos eu pense que não sou um viciado.

Mesmo que seja perto do meio dia meu apartamento está completamente escuro, fiz questão de comprar cortinas blackout para todas as janelas, odeio a claridade. Estou usando uma roupa casual confortável sentindo meus músculos relaxando por conta dos remédios, recostei-me no sofá e sinto como se meu corpo inteiro estivesse prestes a flutuar.

Estou bem.

Penso comigo mesmo enquanto começo a ver, ouvir e sentir o ambiente escuro e vazio ficar cada vez mais reconfortante, isso é interrompido por meu celular que começa a brilhar e estraga esse breve momento, avanço na direção dele para ver qual a notificação e não há nada, devo estar alucinando, largo meu celular e volto ao meu estado de repouso.

O velho rádio à pilha de vô Antônio está em cima do balcão da cozinha, eu costumo deixar ele ligado tocando alguma estação de rádio aleatória, sinto que o silêncio é o pior dos meus inimigos, por isso na maioria das vezes ele está tocando algo e especialmente agora que estou relaxado e livre de pensamentos ruins começo a me afobar e perceber que o vazio silencioso vai consumir minha mente, eu vou na direção do balcão num pulo rápido antes que os pensamentos me aflijam, ligo o rádio e volto a me sentar aproveitando o relaxamento. Ouço o que parecem ser notícias, a moça do noticiário diz numa entonação séria:

A Sexta PeçaOnde histórias criam vida. Descubra agora