CAPÍTULO DEZOITO.

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Briana Chong.

A bebida era doce no começo mas amarga no final.

- Qual é o sentido? – digo em voz alta, Caio e Camila dão gargalhadas – Que foi, doidos?

Caio coloca a mão sobre a cabeça raspada ainda rindo da minha cara, Camila deita a cabeça em meu ombro querendo diminuir o riso.

- Acho que você pensou em voz alta, ou a gente recebeu o poder de ler sua mente – Caio toma um gole da garrafa de vodca ao dizer.

- Não seja chato – Camila mostra o dedo do meio pro irmão – Seu bundão.

A madrugada estava calorosa, o vento que batia em nossos rostos era como uma brasa quente, que quando se misturava com o aquecimento de nossos corpos quase embriagados pelas garrafas de vinhos e uma de vodca, começamos a suar.

Dando a garrafa para Cami segurar, ergo minha bunda da escada de emergência e vou até a janela do quarto da loirinha, passando primeiro uma perna e depois o resto do corpo.

Dentro do quarto procuro algo em específico : Ventilador. Havia a cama que dividia com a dona, não era grande mas não precisava ser, gostava de dormir abraçada com alguém confiável.

Olhei ao lado da cama, sabendo que tinha guardado ele a dois dias atrás ali, liguei na tomada do lado da cama e levei ele perto da janela para tentar amenizar a vontade de tomar banho e arrancar a roupa.

- Dragãozinho  – Camila diz o apelido nada aceito por mim, encarando a menina por cima do ombro posso ver suas sobrancelhas arqueadas – Acha que isso vai fazer o que ? Transformar aqui em gelo ?

Caio ri – Tagarela, é melhor você começar a beber água.

Ele diz apoiando o cotovelo no batente da janela para me olhar, meu corpo estava agachado para ver qual era a melhor visão dele para o buraco que dava para fora.

- É impossível. Vocês não estão com calor ? – pergunto irritada com a camisa grudando em minhas costas.

- Devia ter tomado menos vinho – ele bebe mais um pouco antes de ver a minha catástrofe de sair da janela – Não consegue nem ficar de pé, Tagarela.

Ao passar uma perna pela mine abertura, puxo a outra perdendo o equilíbrio e caindo de costas no chão da saída de emergência, o barulho se alastrou pela ruazinha escura embaixo de nos.

Camila guardou uma gargalhada dentro da garganta que foi saindo aos pouco como um porquinho filhote até parecer o porco adulto, tive que rir junto, pelo simples fato de que ela estava sorrindo, talvez o álcool fizesse parte disso mas era bom ver ela feliz assim como o seu irmão.

Fiquei dois dias sem ver eles, dois dias que me fizeram mau.

- Que maldade – falo entre um suspiro e outro querendo me levantar, vejo Caio girando o conteúdo dentro do vidro, sua cara estava séria, e talvez um pouco pensativa – Vamos lá – ele pisca algumas vezes meio molenga – Vamos filósofo, diga qual é a de hoje.

Camila dá grunhidos de raiva baixo, não sei por que, mas deixar Caio filosofar sobre a vida era como quase uma colisão de ônibus para a sua irmã, dou um chute em sua perna mais próxima tentando deixar a cara séria.

- O que vocês fariam da vida ? – pergunta olhando a garrafa entre suas mãos grandes.

Desvio a atenção dele procurando algum sentido ou resposta nos olhos claros de Camila, que assim que me vê, devolvemos falas com os olhares : que merda é essa ?

- Você quer dizer tipo, negócios e faculdade ? – Camila pergunta, seu irmão acena com a cabeça – Não sei... nunca pensei em fazer uma – ela bebe um gole do vinho – Ou ter um negócio meu.

- Acho que abriria uma pista de corrida – ele deixa a garrafa de lado – Profissional, daquelas que as pessoas pagam por querer assistir a corrida, teria arquibancadas enormes, carrinhos de fastfood de comida para as pessoas e óbvio a garagem dos pilotos profissionais.

O sonho era nítido em cada brilho que aparecia em suas íris escuras e tristes, Caio era um sonhador nas horas vagas, e um realista trabalhando, essa era a diferença entre os dois. Camila já era mais pé no chão em todos os momentos e acontecimentos.

- Quem não soubesse ou não tivesse grana – ele coça a nuca – Ajudaria com isso.

- Que pena que é apenas um sonho entre outros que já teve, irmãozinho – Sentada na escada ela fala olhando em seus par de olhos, o brilho do verde vivo era bonito, como as árvores que tínhamos no jardim da casa de Chong.

- Se a gente não sonhar, a vida passa sendo mais uma entre milhares de seres que não sonham por simplesmente acharem que sonhar é para crianças – digo ao ver a expressão de tristeza no rosto ao meu lado – Eu abriria uma confeitaria.

- Você  sabe fazer comida? – Camila pergunta segurando uma risada.

Fico tão reta que dói minhas costas – Não, mas – aponto o dedo para ela com um sorriso de orelha a orelha – Nunca é tarde demais para aprender.
Além disso comer é bom demais.

- Você iria a falência – ele gargalha – Aposto que não deixaria comida para os clientes - gargalho junto com ele sabendo que é verdade.  

Camila revira os olhos bufando – Vocês dois me dão nojo, sabiam? – Caio colocou o braço por cima dos meus ombros sacudindo nós dois com uma careta feliz – Vocês sonham demais, e quem sonha demais não sabe por onde esta caminhado, porque só fica olhando para cima e mais e mais, cada vez mais alto, até que encontra um avião e ele faz você olhar para baixo e ver o quanto te custou subir até ali... a queda é feia e da medo, tirando que machuca pra caralho.

- Mas ai que esta a graça – Caio diz, Camila o olha debochada – O ser humano tem que ter altos e baixos, sem isso somos apenas sonhadores que conseguem tudo exatamente sem nenhuma graça, a montanha russa faz parte da vida.

Ela o olhava com certa melancolia, Cami sempre mostrava para nós dois que era uma mulher realista, tirando sarro dos nosso sonhos fingindo as madrugadas.

Mas quem somos sem nossos sonhos? Nada, apesar um pedaço de carne ambulante como a maioria dos humanos.

Mas a realidade é, não iriamos fazer nenhuma dessas coisas por sermos frutos de um casamento tóxico e arranjados, filhos de pais que pensavam que devíamos algo por nascer.

A rua estava com cacos de vidros e poças escuras de sangue manchando o asfalto e a calçada, deixei o carro a duas casas antes de chegar ao restaurante, as lojas estavam vazias e os prédios sem barulhos.

Desliguei o carro olhando para o segundo andar, o barulho do motor parou de fazer parte do ambiente, o silêncio da rua invadiu meus ouvidos, tive que apertar o volante uma única vez antes de abrir a porta e sair, deixando toda a coragem dentro dele.

Era estranho vir aqui e não encontrar eles olhando lá de cima.

A frente do restaurante estava destruída, cápsulas de balas estavam pelo chão, espalhadas. A cada passo que dava ouvia os vidros se quebrando e deslizando sobre a sola dos tênis, fazendo meu equilíbrio ficar atrapalhado, a pintura nova foi destruída pelas marcas de buracos e respingos de sangue.

Passei pela calçada para entrar no restaurante, as mesas estavam furadas e as cadeiras caídas, o  espelho que cobria toda a parede do fundo do espaço estava trincado com buracos pequenos de balas, o sangue seco de Rafael trilhava da porta do corredor até a cozinha onde fiz ele pagar por sua vida.

Não lembro muito bem do como  o local estava mas podia jurar que haviam corpos no chão de fora e aqui dentro também, mas eles já não estavam aqui e a faixa da polícia não estava grudada na entrada.

Atravessei o amplo espaço para chegar ao corredor claro pelas luzes que haviam no teto branco, andei deslizando as pontas dos dedos na parede com textura de papel de parede amontoado um em cima do outro, até chegar a escada caracol meia queimada que levaria para o segundo andar onde me despediria deles. 

O andar inferior foi queimado por inteiro na exploração quebrando os vidros do primeiro andar e a porta de vidro temperado também, já o segundo teve uma queimação em baixo de cada cômodo que Rafael foi obrigado a restaurar para voltar a morar aqui, o caminhão de bombeiros chegaram na hora que o fogo estava indo para as lojas e apartamentos vizinhos para apagar o incêndio.

Subindo os degraus um por um, sentindo um peso se alastrar para o meio de meu peito deixando ele apertado e dolorido, respirar estava ficando difícil a cada madeira que estralava com o meu peso, chegando no último degraus o cheiro de homem que mora sozinho impregnou meu nariz, essa foi a parte da casa que mais fiquei durante os três anos.

Apesar do momento ser algo triste, alguma coisa não me deixa sentir isso, conseguia ver as noites que ficamos bêbados pelas cinco garrafas de vinho e uma de vodca que Caio e Camila roubaram do bar do restaurante, sem Rafael saber.

Da noite que dançamos com os fones pelo corredor quando Rafael estava em um compromisso importante fora da cidade, as risadas abafadas que demos, das piadas que contamos sem entender nada, e das palavras que saiam da boca de Camila pelo álcool fazendo seu trabalho perfeitamente, dos tombos que Caio dava ao tentar levantar por precisar tirar as formigas que estavam em suas pernas, um riso saiu de mim assim que relembrei das noites ao passar pelo corredor.

Entrei no quarto de Camila olhando a pequena janela que levava para a escada de emergência, ali foram todas as madrugadas, as manhãs de despedidas, ali era nosso lugar de paz onde tudo se tornava calmo e possível sair dessa vida, entre uma briga e outra, sinto falta disso.

Falta das conversas bobas que tínhamos, das longas histórias de terror que Caio contava para colocar medo em nós duas, as risadas de porquinhos, hiena e sem som que dávamos, é disso que sinto falta todas as madrugadas.

A cama dela estava arrumada, a cômoda limpa, o tapete estendido pelo chão de madeira, tudo estava no seu devido lugar como ela deixou, apesar de algumas coisas não estarem ali, como seus pôsteres de bandas, as garrafas de vinho que ficavam na janela e seu ursinho de pelúcia.

Abrindo o guarda-roupa pude ver suas roupas em perfeita ordem, as blusas vinhos, pretas, verdes ainda nos cabides, todas as roupas ainda aqui, ela nunca tinha pensado em ir embora depois da morte do irmão, ela fez aquilo para se matar... ela tinha planejado tudo aquilo para cometer um suicídio.

Meu coração se apertou ao pensar nisso, devia ter levado você comigo, tinha que ter feito algo para tentar salva você das mãos de seu pai, meus olhos arderam e em poucos segundos soltaram as lágrimas acumuladas pelo tempo, pela saudade, pela falta que ela fazia.

Não aguentei ficar de pé ao mesmo tempo que meu coração se despedaçava por completo. Sentei no chão abraçando meu corpo para tentar me consolar, querendo que a saudade passasse e que tudo tivesse sido diferente em nossas vidas.

Soluços e saliva se acumularam dentro da minha garganta, tinha vindo aqui para deixar tudo solto, libertar a saudade deles, queria voltar para mansão sem nenhum resquício de choro acumulado, tinha que fazer isso, tinha que me tornar forte para mim mesma, não quero mais sentir medo, não quero mais chorar por uma coisa que fiz e faria novamente.

Enterrei o rosto no buraco que fiz ao abraçar os joelhos e chorei.

Não sei quanto tempo fiquei na posição fetal mas minhas pernas estavam cansadas e formigando pelo sangue mal circulado, limpei as lágrimas de minhas bochechas para me recuperar e seguir para meu outro objetivo de estar aqui, virei a cabeça para ver algo em que me apoiar para levantar mas perco a linha do raciocínio quando encontro o isqueiro prateado com uma rosa pegando fogo no topo da mesinha de cabeceira, estendi a mão para pegar.

Pensei que tinha sido com esse que ela botou o fogo no restaurante, girei o isqueiro vendo um dragão do outro lado, um igual a tatuagem de minhas costas, não continha esse desenho da última vez que o vi, um barulho de algo sendo quebrado veio do andar inferior me assustando.

Percebi que minha cara estava toda franzida, ainda sentada esperei ver algum movimento no corredor, nada, fazendo força nos braços ergui o corpo com dificuldade ainda segurando o isqueiro na palma da mão, dei passos leves e calmos até chegar a porta e com cuidado espiar se tinha alguém na escada.

O barulho ainda vinha do piso inferior parecia vozes de pessoas, meu peito subia e descia rápido pelas milhares coisas que passavam por minha cabeça agora, se fossem os meninos eles chamariam pelo meu nome, e mesmo que fosse a Lana saberia pelos surtos dela.

Precisava de uma arma, matutei com a cabeça ainda focada na escada, lembrei que Caio tinha guardado um taco de baseball de quando era jogador, atravessei o corredor dando uma corridinha para o quarto de Caio que ficava alguns passo do outro lado do de Camila, onde sabia que acharia um taco de baseball de sua infância.

Estava escuro pela cortina preta que ficava na janela, andei pisando no tapete peludo e quando senti meu pé se prender em algo, tropecei caindo no chão com impacto forte de meus joelhos e antebraços tentando salvar meu rosto da pancada, esperei ouvir vozes vindo de baixo mas nada veio, levantei com calma deixando a minha visão se acostumar com a escuridão.

Encontrei o guarda-roupa, relei na maçaneta e abri sentindo um cheiro de mofo forte que embrulhou meu nariz, minha arma estava no cantinho escondido atrás de um montão de roupa jogada e provavelmente donas do mofo.

Russa Perigosa ao Extremo. Onde histórias criam vida. Descubra agora