O inverno mata a chama - Cap. 23

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Eu matei toda minha família.

Sozinho

Realmente sou um monstro que meu avô dizia.

Não me lembro de muita coisa além de sair tropeçando pelos móveis e sendo enterrado gradativamente na busca pela saída, cavando para cima com movimentos frenéticos, perdidos e desconexos, procurando por uma saída e por aqueles que vieram comigo.

Quando todos os corpos foram localizados, a maioria já perto do gelo, alguns ainda parcialmente debaixo da terra, ele caiu no chão roxo com um baque, batendo os joelhos de encontro a terra, se curvando a frente e levando as mãos à cabeça

Seus olhos estavam vidrados e confusos, não querendo perceber as feições cansadas, o sangue escorrendo das faces desoladas ou a falta daqueles que não conseguiram completar a subida.

Ajax arregalou os olhos e não conseguiu formular as palavras necessárias para a raiva que estava sentindo. Ele não conseguia acreditar que teve a vida destruída, junto com a tantas outras famílias, somente pelos planos daquele homem.

Ajax sentiu todo o peso do mundo cair sobre seus ombros e só quis ir embora para casa, ver se aquilo que aquele homem disse realmente aconteceu, porém nem essas súplicas conseguia proferir.

O fogo consumia a terra, ele pensou em tentar projetar o corpo para fora daquela terra, mas seus músculos e mente estavam muito distantes. O fogo vinha em sua direção consumindo os corpos pelo caminho e Ajax apenas ficou olhando aquelas formas de morte que vinham até ele. Se sentindo merecedor daquele destino.

Ele se sentou no chão e deixou a cabeça cair para frente. O fogo o rodeava e ele pensou se não seria melhor morrer ali, afinal ele tinha muito mais culpa do que imaginava, ele era realmente um mostro como aquele homem dizia. Ele condenou a mãe, fez o pai ser morto, matou a avó que o defendeu quando não pode, atacou seus guerreiros, seus irmãos, matou seu avô e causou a ruína do próprio povo. E condenou aquelas que estavam mais presentes em seu coração.

Ajax viu Lívia e Edu ao seu lado o ajudando a se levantar e ir em direção a casa, mas não os olhou realmente, seus olhos estavam vazios e sem esperança. Tudo o que vinha guardando dentro de si saiu como uma grande tristeza que o deixava letárgico e apático. O fogo queimava suas roupas e ele mordeu a própria mãe até a sentir ela ficar molhada com um sangue negro, mas ele não sabia dizer, pois não conseguia mais saber se estava vivo, o fogo estava o consumindo e ele não sentia nada.

Quando acordou estava sendo amarrado ao corpo de um lobo que corria velozmente pela neve, o sol dificultava abrir completamente os olhos, mas a sensação de queimado sobre a pele ainda existia. A sua mão esquerda estava enfaixada e sua visão estava em preto e branco. Ele se virou para o lado e deixou ser levado por quem quer que seja apenas não pensando em nada. As paisagens que ele viu, agora eram somente formas geométricas sem graça. Ele foi jogado no chão, mas a dor da pancada não veio, nenhuma sensação veio.

-Que merda aconteceu com você? – Ajax não via mais sentido em nada. Realmente não se importava por Eniel estar gritando com ele agora na forma humana. – Por que você estava no meio do fogo se machucando? O que aconteceu lá dentro com você? —Seu irmão o olhava com algum sentimento que Ajax não se importava.

O grupo tinha se encontrou no meio do caminho quando o cheiro de queimado surgiu e Eniel resolveu recuar, em busca do grupo principal, e mandar Mattew de volta para casa com notícias.

Ajax se colocou de pé e foi caminhando sozinho pela neve. Suas poucas roupas ou o cheiro de queimado não o interessavam, seus pés estavam desprotegidos e sangue manchava a neve sob os pés nus de Ajax. Ele era uma pessoa horrível.

Eniel o pegou pelo pescoço e trouxe o rosto dele para perto, o fazendo encará-lo —Ajax apenas continuou o olhando.

— Eu sabia que você ficaria estranho, que essa conversa não seria boa coisa. —Ajax tinha os ombros baixos e o semblante distante e cansado enquanto andava sem ter um destino, era assim que ele se sentia, perdido. —Você nunca me contou o que ele fez com você, mas eu sei que ele te mudou.

Eniel percebeu que Ajax estava dentro de um poço que ele não sabia se poderia o puxá-lo de volta, mas confiava que tudo estivesse certo quando chegassem em casa e Ajax revesse aqueles que ama. Estavam a poucos dias de distância, porque ele não parou para descansar ou esperar um grupo inteiro sair para caçar e depois se alimentar.

-Ajax, vamos correr, não precisa pensar em nada agora, só corre atrás de mim. -Ajax o olhou sem reconhecer por um momento quem falava aquilo para ele, mas sem ter muitos objetivos apenas correu, em forma de lobo, sem motivo atrás daquele outro lobo. Ele correu sem saber para onde estavam indo, apenas fez de modo automático.

Se passaram o dia ou a noite, Ajax não podia dizer, eram apenas horários para ele. O homem loiro e estressado que ele seguia, sem saber por que, parava para comer, mas ele não o fazia, não entendia por que o homem levava coisas a boca e as consumia. O homem dizia para voltar a correr e ele simplesmente corria sem entender muito para onde. Algumas vezes o homem se deitou em forma de lobo e Ajax o observou ficar de olhos fechados, quando abria de novo parecia mostrar algum sentimento para Ajax que não conseguia entender. O homem abria a boca e a mexia olhando em sua direção, Ajax apenas o olhava e continuava a andar. A neve que ditava o começo da fronteira de seu reino já estava aparecendo.

Todos ficaram aliviados quando enfim a montanha surgiu em suas vistas. Ajax vinha atrás deles, andando pela primeira vez sem estímulo externo. Andou até o centro da clareira e parou perto do mar. O olhar fixo nas pedras do chão, nas marcas deixadas na neve de corpos de Ecals que foram arrastados do cercado até o fundo do rio que o corpo e Mattew caído sem vida na borda do rio ao lado da coberta que ele tinha deixado com sua companheira.

Mas ninguém veio.

Lívia ultrapassou todos os restos de construções que sua matilha tinha feito e estavam destruídos no chão, junto de cobertas e pedaços rasgados de roupas pequenas e uma blusa que pertenceu a Bárbara. Lívia gritava por seu companheiro e filho. Eniel permaneceu parado com as mãos tremendo em cima do coração, a faze perplexa e congelada de pavor. Todos entenderam onde estavam aqueles que tinham deixado para trás. E nada podia ser feito. Os bruxos tinham chegado antes. E aquele era o fim.

O lobo se ajoelhou e manchou o solo branco com lágrimas negras que lhe tomaram todo o coração, apenas um sussurro escapou por entre seus lábios após muito tempo de silêncio.

—Minha chama de luz que me trouxe de volta. Como toda faísca, o inverno te matou.


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