Bebo mais um gole de bebida enquanto observo Vladimir se aproximando no meio do mato em penumbra com sua barba castanha amarelada cheia, sua pele morena bronzeada e seus olhos cor de folha seca reluzindo a luz da lua.
Ele arranca a garrafa da minha mão, furioso. Já perdi a conta de quantas dessas eu bebi.
— Perdeu a vergonha, Ramon? Vai ficar se embebedando?
— Eu não me importo. É a única forma de eu aguentar tudo isso, calado. Você demorou! Achei que não vinha mais.
— O que você quer? É o dia do meu casamento. Eu te avisei que ia ficar difícil de nós nos vermos com tanto movimento e gente em cima de mim. Sua irmã fica grudada em mim o tempo todo.
— O problema é esse, Vladimir. Eu tenho medo de não conseguirmos mais nos encontrar depois do casamento.
— Você sabe que eu não fico mais sem você. É claro que vamos continuar nos vendo.
— Eu não sei não... Eu não suporto mais tudo isso... Está muito difícil... Eu não sei se consigo continuar com essa farsa.
— E o que você quer que eu faça?
— Quero que fuja comigo. Ainda está em tempo. Eu tenho dinheiro o suficiente pra nos manter por alguns meses longe daqui.
— Eu já disse que eu não vou fugir. Não vou dar esse desgosto pra minha família nem pra sua irmã. Você quer que ela sofra, é isso?
— Claro que não, nós não temos culpa de termos nos apaixonado, não dá pra colocar a felicidade dos outros acima da nossa, isso não é ser egoísta, é nos colocarmos em primeiro lugar, nós também existimos. Eu andei pesquisando. A maioria dos ciganos estão mais evoluídos que nós. As moças já podem sair pra trabalhar, estudar, podem usar calças e escolher com quem vão casar ou se vão se casar um dia. Nós também podemos escolher nosso próprio destino.
— Por que você fica se comparando com as outras pessoas? Nós somos nós e temos as nossas tradições. Você não devia ficar misturando as coisas. Quer mudar o que sempre existiu antes de sequer pensarmos em nascer! Olha, eu vou voltar pro acampamento. Já devem ter notado nossos sumiços. E você toma um banho gelado pra refrescar as ideias e curar essa bebedeira. Depois que a cerimônia acabar, nós conversamos melhor sobre a nossa situação. Certo?
— Então é isso? Simplesmente vai me deixar aqui seu imbecil? — totalmente nervoso, lhe dou um empurrão.
— Para com isso, Ramon. Você sabe que eu não tenho escolha!
— É alguma marionete por acaso? É claro que você tem escolha e você está escolhendo desistir de mim!
— Do que você está falando?
— Ou você foge comigo ou a gente termina tudo que temos aqui!
— Você não pode estar falando sério, está?
— Eu nunca estive falando tão sério em toda a minha vida. Decide logo!
Há um minuto de silêncio ensurdecedor, intenso e angustiante.
— Eu não acredito em você. Está bêbado e sua ameaça não passa de um blefe. Faz como eu te falei. Cura essa bebedeira e depois a gente se fala direito.
— Por favor, Vladimir! — o agarro e começo a beijá-lo. — Não vê que eu estou desesperado? Eu te amo. Vamos fugir e viver esse amor.
— Eu também amo você, mas não é certo fugir e fazer nossa família sofrer — com a mão livre ele acaricia meu rosto com nossos lábios muito próximos.
O empurro pra longe de mim de novo.
— Dói aceitar isso, mas a verdade Vladimir é que você não me ama. Se me amasse como está dizendo, fugiria comigo sem pensar duas. Vai lá, volta pra festa.
— O que você vai fazer?
— O que eu farei daqui para frente não será mais da sua conta — anuncio e me afasto com o coração em pedaços.
Ele não acredita que sou capaz de deixá-lo. E eu não pretendo continuar me humilhando e vivendo uma mentira.
Sigo para a tenda da minha família. Aproveito que todos estão distraídos com a festa e junto pertences essenciais em uma mochila, além é claro do dinheiro que consegui juntar
nos últimos meses vendendo meus artesanatos. Não é justo eu fugir com as joias do dote e deixar minha mãe desamparada, uma viúva que não tem como se sustentar. Mas eu sei que o Vladimir e a família dele vão cuidar dela no meu lugar. Minha comunidade preza muito o respeito pelos mais velhos.O único bem que vou levar comigo é a moto que comprei com meu dinheiro. A primeira pessoa que me vem na cabeça é Daniel. Então piloto até a pensão onde ele está hospedado. Ele me pareceu um cara legal e não deve se importar em me receber por enquanto.
Quando chego no local, a recepcionista me deixa subir sem problemas e eu bato na porta várias vezes, mas ninguém atende. A mulher disse que ele ainda está na cidade e foi o que o mesmo me garantiu ontem à noite. Ela também me disse que ele chegou por volta de umas oito horas e não saiu mais. Só pode estar dormindo. É claro que eu tenho dinheiro para pagar um quarto, não preciso dormir na rua, eu não sei por que mas eu gostei do Daniel e quero a companhia dele. Estou prestes a desistir quando a porta enfim se abre.
— Ramon? É você? — ele pergunta sem camisa revelando um abdômen peludo e musculoso com cara de sono.
— É, sou eu mesmo, me desculpa te procurar a essa hora da madrugada.
— Tudo bem, vem, entra aqui. Fui eu que te incentivei a me procurar quando quisesse ontem, se lembra?
— Por isso estou aqui — entro e fecho a porta.
Ele olha de mim para minha mochila e vice-versa:
— Aconteceu alguma coisa?
— Estou com problemas de família e queria um lugar pra passar o resto da noite, mas se você não me aceitar, tudo bem, eu procuro outro lugar.
— Ei, relaxa. É claro que você pode ficar aqui comigo. Mas toma um banho antes ok? Você está fedendo a bebida.
Sorrio constrangido. Estou mesmo.
Ele se deita e se cobre sem vergonha alguma como se nos conhecêssemos a vida toda.
— Tem toalha limpa lá no banheiro.
— Obrigado.
Sigo as orientações dele e quando termino fico parado perto da cama sem saber o que fazer.
Quando estou cogitando em dormir no tapete, Daniel que parecia estar dormindo de novo, de repente se vira e me encara:
— Ei, o que está fazendo parado aí? Vem deitar. Eu não mordo.
— É que eu não sabia se podia...
— Claro que pode, gato.
— Você não tem medo de dar tanta liberdade pra um desconhecido?
— Por quê? Você é um psicopata?
— Claro que não.
— Bom, se fosse você não diria né? E você acha mesmo que só porque eu tenho boceta eu não sei me defender? Que machista hein! Deita antes que eu te coloque pra fora...
Ele diz a última frase com um tom de riso. Eu simplesmente me deito ao lado dele e me cubro. Pelo visto eu tenho muito o que aprender com Daniel.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.